domingo, 5 de setembro de 2010

Ninguém me Conhece: 6) O Centro Está em Todas as Partes de Kléber Albuquerque

.
Em minha trajetória musical identifico quatro fases evolutivas de maior impacto sobre meu estilo: Chico Buarque foi meu jardim da infância, pois foi ouvindo-o que senti por vez primeira a necessidade de compor, ainda que rusticamente imitando-o; Élio Camalle foi meu ensino fundamental, por seu intermédio aprendi a não pretender ser Chico Buarque; tive em Kléber Albuquerque meu ensino médio, quando o descobri, passei a ser mais criterioso na busca pela originalidade; já o espanhol Joaquín Sabina foi meu ensino superior, suas canções me ensinaram que há degraus acima da originalidade passíveis de ser galgados por quem não teme quedas e aprende a fazer amor com as palavras. Houve outros, obviamente, mas considero estes os quatro pilares fundamentais na construção de Léo Nogueira (que segue em obras – e aberto pra balanço). De Chico Buarque todos já falaram; de Élio Camalle vivo falando; de Joaquín Sabina tratarei em seu devido tempo; neste relato quero traçar algumas impressões acerca de Kléber Albuquerque:

Dizem que a primeira impressão é a que fica. Há controvérsias. Minha primeira impressão de Kléber foi negativa, por vários aspectos: 1) Conheci-o no apartamento de Camalle, num encontro entre artistas do selo Dabliú Discos (encontro no qual era eu um penetra com o consentimento do anfitrião), e me pareceu arredio, de uma timidez que poderia ser entendida como orgulho ou antipatia. Seus olhos não paravam quietos, dançando de um lado pro outro, perscrutadores, como os de um animal acuado. 2) Quando ouvi seu primeiro CD, 17.777.700 (também o nº de seu RG), causou-me estranheza. Uma linguagem que carecia de clareza vestia canções com nomes quilométricos que nada pareciam ter a ver com os temas, como Balada da Tarde Fria com Alicates, A Valsa do Velho com um Pregador na Orelha, e por aí ia. 3) Kléber chegava sem avisar e, sem pedir licença, roubava de mim o amigo mais precioso: Élio Camalle. Explico: na época, poder-se-ia dizer que, se Camalle era Dom Quixote, eu era seu Sancho Pança. A chegada de Kléber bagunçou o roteiro. De repente o clássico se dissolvia em prol do moderno, e Camalle já era uma espécie de Robin de um Kléber Batman. E não havia espaço pra escudeiros nessa aventura.

Contudo, como sou masoquista, humilde e teimoso, dei-lhes uma segunda chance, enquanto os acompanhava à distância. Reouvi o 17.777.700 e vi que eu estava lá! Os versos da canção Estilhaço me descreviam: “A gente morre a cada dia um pouco/ A gente corre e não acerta o passo/ A gente morde até arrancar pedaço/ Até chegar no osso/ Até virar bagaço./ A gente chora e não sabe o motivo/ A gente lambe a sola do fracasso/ Parece calma mais é só cansaço/ Na carne o estilete/ Na cara o estilhaço./ Meu amor/ Eu sou tão só/ Estou tão sem/ Eu sei de cor/ A cor, o bem/ Não sei viver sem dor”. E eu não sabia.

Encontrado meu hino, fui depositando olhos benevolentes no disco, e, em pouco tempo, se não o considerava uma pérola, já conseguia gostar da maior parte das canções que residiam ali. Passava a notar nelas a marca do artesão. Bonitas ou feias, populares ou estranhas, eram canções que traziam em sua pele a assinatura do autor. E foi então que comecei a me fazer incômodas indagações que me sacudiam do conforto do lugar-comum. Qual a relevância de meu trabalho? O que pretendo dizer com ele? No que minha poesia difere do mar de palavras jogadas em excessivas canções? O que escrevo me reflete? Por conta dessas “perguntações” afirmo que Kléber foi meu ensino médio. Porque era nesse período que minha criação adolescia.

E eu adoecia. Já com um número considerável de parcerias com Camalle e cheio de expectativas, foi como um soco na boca do estômago que recebi a notícia de que em seu segundo CD, Cria, havia, como prêmio de consolação, apenas uma parceria comigo, Conto. E “o otário do conto fui eu”. Já Kléber, não apenas emplacara duas parcerias no disco daquele, como também era seu diretor artístico! E, mais ou menos na mesma época, pra minha inveja, nascia Para a Inveja dos Tristes, segundo disco de Kléber. Este, sim, uma pérola! Agora ele tinha “a chave certa para cada porta, a resposta exata pra qualquer pergunta” e, embora tivesse “um coração selvagem na jaula do peito”, revelava sua vantagem: era ele feito do metal que o feria! E me feria: também em seu disco, duas parcerias com Camalle!

A mim restava continuar estudando. E estudando aprendi a filtrar o que era eu em tudo o que ouvia (e via). E Para a Inveja dos Tristes foi excelente material didático. Nele “arrumei a casa, espanei o pó do peito, […] areei os olhos, me quarei” em seu riacho, “comi os dedos no rosário”, aprendi a não esterçar “a coluna em serventia” (porque “quem é de comer na mão cospe quando é mão vazia”), a mentir que não me banhava “nas águas da fonte do rio da palavra amor”, a fingir que era dor a dor que sentia, assim meio que “como um cão que lambe a lua na poça” e fui decifrando-o, devorando-o, antropofagicamente, beijando de meu passado a lona e de meu presente os dentes (e ainda lhe lambendo a língua), até enxergar sem lentes (mas com olheiras) meu tempo: tempo de pedra! Agora, embebido dele, estava alforriado, pronto pra voltar do riacho, me secar e vestir minha própria roupa.

Foi assim que fui lá, depois do fim do mundo, bater em sua porta e trazer de volta, pelos cabelos, meu Quixote. Eu, que fora Salieri, teimoso, não aceitei tal condição. Agora eu me sentia Cervantes. Antes e Depois do Fim do Mundo, terceiro CD de Élio Camalle, contava com quatro parcerias com Léo Nogueira. Kléber, por sua vez, posto de lado, não se abalou, e gritou aos quatro cantos, em seu também terceiro disco: “O Centro Está em Todas as Partes”.

E ficou lá, metade Maomé, metade montanha, sabedor de que “as coisas vão e vêm”. E, enquanto Camalle ia e voltava do fim do mundo, Kléber afirmava que “antes do fim do mundo o mundo vai acabar. É só tocar no ponto G da bomba H”. Embora nos achássemos distantes, sabíamos que éramos vizinhos “de Parede-Meia”. Ele não dava bandeira, mas ‘tava chegando. Pondo “os dentes na hora do soco”, a “fome na lata de mantimentos” e a “casa no olho do furacão”. E, enquanto seu coração levava “areia para construir cadeia” e “cimento pra fazer estacionamento”, segurava-se “nas mãos distraídas de Deus”, esperando a paz quebrar a perna pra, enfim, alcançá-la, e aprendia a fazer seu amor voar, pra se acaso a ponte quebrasse, perguntando-se que presentes nos daria. Botando “o carro na frente dos bois”, fazendo um movimento e, logo, um movimento contrário. Só porque lhe dava na telha.

E, só porque lhe deu na telha, resolveu fazer um Desvio. Porque Kléber sempre foi assim, obediente única e exclusivamente a uma brasa no peito capaz de lhe queimar a camisa. E foi assim, “procurando pedra pra tropeçar”, que topou com novos parceiros e, com eles, “deu de inventar palavra pra curar de significado” e “falar esperanto, na esperança de ser compreendido”, comeu pedra, bebeu água de chuva, viu “um disco voando sobre a cidade às 6h30 da tarde”, constatou que “não há vão no vazio” e que “a liberdade é do tamanho da corrente”, mas, porque seu querer já não o queria, passou a escrever suas letras “com tinta vermelha, pra lembrar sangue”. Contudo, seu “estado tem dois lados”, “um certo, outro errado, um exato, outro incerto”, por isso ele cuidava do cãozinho Esaú, em seguida lhe quebrava as patas e novamente o levava “para casa para cuidar do pobrezinho”...

Em meio a tantos cuidados, Kléber aprendeu que “Só o Amor Constrói, mas depois cobra a fatura”. E era chegada a hora de pagá-la. Foi nesse momento, em que Kléber pagava as contas do amor e Camalle, após ter mostrado sua face de bicho preto, moldava sua felicidade, que ambos se reencontraram. Foi um dia de estrelas! Eu, que sempre me senti meio Vinicius de Moraes em relação a meus parceiros, exigindo deles fidelidade e, em contrapartida, sendo promíscuo, exercitei a grandeza, e cheguei mesmo a ficar feliz com essa reaproximação. Até porque agora eu estava pronto pra ir junto. Meus frutos caíam da Nogueira. A imaturidade já não me cegava. Pela primeira vez podia enxergar Kléber Albuquerque tal qual ele era, e não como as grossas lentes de meu ciúme e minha inveja o deturpavam: a dança de seus olhos não era de afastamento, era de aproximação. A perscrutação era apenas uma forma de buscar reconhecer nos interlocutores solo fértil. Quando pude enxergar isso, baixei a guarda e tornei-me disponível. Foi assim que nos tornamos amigos. E parceiros. A que ficou foi a última impressão.


***

Ouça alguns dos presentes de Kléber Albuquerque aqui:
http://clubecaiubi.ning.com/profile/OXdoPoema
.
Por Léo Nogueira - http://oxdopoema.blogspot.com/

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário