segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Ninguém me Conhece: 9) O Imprevisível Sonekka

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Zé Edu Camargo nem deve se lembrar, mas aquela noite está clara como o dia em minha mente. Convidado por Élio Camalle, cheguei, junto com este, ao estúdio onde ele gravava seu CD Bicho Preto, e lá encontrei Celso Viáfora e o já citado Zé Edu, que, por sua vez, havia sido convidado por Celso a assistir à participação que este faria na canção Arsênico (de Camalle & Camargo), pertencente ao supracitado disco. Enquanto Celso aquecia as cordas vocais e decorava a letra e alcançava as nuances da melodia, Zé Edu, à queima-roupa, sem maiores preliminares, recitou-me: "Um cara como eu/ devia ter um calo no lugar do coração,/ devia trazer/ duas pedras na mão,/ devia cantar/ como quem cospe no chão./ Um cara como eu/ sabe do que fala/ quando diz do desamor,/ da solidão,/ da dor que não passou,/ desilusão/ de não saber onde errou./ Mas toda rasteira,/ cada tombo/ e as porradas mais doidas,/ todo susto nessa vida,/ me fazem mais forte/ e eu vou em frente,/ forjando o aço/ afiando o corte./ Eu sou duro na queda/ hardcore,/ mas não perco a ternura jamais./ Eu vou à guerra,/ mas sou de paz./ Se num soco beijo a lona,/ eu me levanto,/ e o sangue agridoce em minha boca/ é o mesmo que me aquece o coração".

Quem acabou recebendo o soco e beijando a lona fui eu. E o sangue agridoce em minha boca era um misto de emoção e inveja. Explico: Numa situação em que a letra fosse o positivo e a melodia o negativo, Sonekka seria meu negativo. A facilidade que tenho pra letrar melodias é a mesma que ele tem pra musicar letras. Ou seja, somos ambos movidos e inspirados pelo material que temos em mãos. Mas tenho que tirar o chapéu e acrescentar que, nesse quesito, Sonekka é ainda mais eficaz que eu. Sua facilidade é tanta que eu não estaria exagerando se afirmasse que ele é capaz de musicar bula de remédio. E é justamente aí, nessa facilidade, que reside também seu ponto fraco. Seus detratores (sim, eles existem), os emepebistas radicais, consideram-no um compositor menor por conta de muita balada perdida deste que ouviram (não me refiro à canção homônima de Camalle que Sonekka gravou). E aqui ajo como o advogado do diabo. Como sou um admirador crítico de sua obra e, embora tenhamos uma "brodagem" e eu seja seu camarada e parceiro de canções e empreitadas, não sou seu amigo do peito, possuo o distanciamento necessário pra analisar-lhe a obra, coisa que um Zé Edu ou um Tavito, fãs incondicionais que são, por mais belos que fossem (e são) os textos, não o lograriam.

Contudo, se minha função aqui fosse simplesmente a de atirar pedras, o texto não teria razão de ser. A questão merece um aprofundamento maior. Sonekka hoje é um compositor amadurecido, que sabe o momento de dizer não, mas tal amadurecimento se deve ao fato de ter ele durante anos dito sempre sim às infinitas letras que lhe caíam nas mãos, vindas dos mais variados rincões do Brasil... e do mundo! Letras estas que foram cobaias de seus experimentos musicais (algumas delas, minhas, confesso). Deste laboratório saíram canções sofríveis, fracas, razoáveis, legaizinhas, boas, excepcionais e até geniais (pudera, Sonekka há muito ultrapassou os três dígitos). Algumas me deram sono, outras me levaram às lágrimas. Outro ponto em comum comigo (e com Moska) é que Sonekka funciona melhor com os amigos. Daí o fato de suas melhores canções terem sido compostas em parceria com Zé Edu, Ricardo Soares, Ricardo Moreira, Gilvandro Filho, Alexandre Lemos, Zé Rodrix...

Outro calcanhar de aquiles, ainda segundo os detratores, seria o timbre, que lembraria o de Cazuza. Mas não vou cair nessa esparrela. Timbre, como nome, sexo e naturalidade (entre outras coisas), não se escolhe (embora atualmente muita coisa se possa trocar). Se a obra é relevante não vai ser o fato de o timbre lembrar o de fulano ou o de beltrano que comprometerá o resultado final. Ademais, o senso de humor do tempo tira de letra tais argumentações. Delicioso exemplo é o de Renato Russo, que, em começo de carreira, era confundido com Jerry Adriani. Anos depois seria justamente Jerry quem gravaria um disco só com sucessos de Renato (então já falecido), espantando a juventude da época, que desconhecia por completo o ídolo da Jovem Guarda.

Mais que um timbre genérico, Sonekka é um talento ímpar, uma mente criativa e polêmica (a exemplo de seu amigo-parceiro-guru Zé Rodrix), um mago da informática, um agregador de perdidas ovelhas da música, o braço direito (e o esquerdo) do Clube Caiubi (e o cérebro que alargou os horizontes deste mesmo clube ao transformá-lo numa rede virtual que ultrapassou as barreiras fronteiriças), um cara sensível e complexo, um... Paremos por aqui, senão vira tese. Em vez disso, cometo a indiscrição de relatar um pequeno ocorrido à guisa de exemplo: certa vez, passando o réveillon na casa de Zé Rodrix, instantes depois dos fogos (ou terá sido durante?) notei que o anfitrião atendia uma chamada telefônica. Do outro lado da linha, diretamente de Santos, estava um camarada de porre, aos prantos, soltando frases como farpas, infeliz talvez pela inútil felicidade geral, pondo em xeque sua condição de vivente e criador, enfim, desafogando com o amigo mágoas que também reconheci minhas. Naquela noite, presenciando-lhe um momento de fraqueza, aprendi a respeitar (e entender um pouco) mais o ser humano do outro lado da linha. Esse cara que teve a coragem de fazer de um apelido de tempos de escola nome artístico e que foi visionário ao se antecipar aos tempos de Google trocando-lhe o C por um duplo K, tornando-se assim único.

Desconfio das linhas retas. Por isso, fiz todo esse rodeio pra voltar ao parágrafo inicial: a letra que me recitou Zé Edu naquela noite foi a campeã de um concurso (diria mesmo um desafio) que Sonekka lançou entre os parceiros letristas pra chegar à canção-título de seu disco Agridoce. Eu, claro, fui um dos muitos concorrentes. E digo mais, até conhecer a letra do Zé, achava a minha imbatível. Mas foi só ouvir os primeiros versos pra jogar a toalha. Ainda acho até hoje (pura dor de cotovelo) a minha melhor. Mas tenho que admitir que a do Zé era a perfeita tradução do que Sonekka queria, ao passo que a que compus (em parceria com Camalle) se prestava a outra coisa. Zé Edu, como um bom amigo de fé, irmão camarada, decifrara o parceiro.

Mas é esse o ponto. Em meus textos anteriores procurei nas canções dos homenageados material que os sintetizasse e servisse de título pra coluna. Porém, no caso de Sonekka, não achei nem em Agridoce nem em outra canção sua a frase (ou a palavra) que buscava. A palavra que encontrei não consta de seu repertório: imprevisível! Sonekka é meio como os versos da canção O Quereres, de Caetano, que dizem que onde queres isso sou aquilo. Ah, que bruta é a flor deste querer, que quer catalogar o incatalogável, que quer exigir que o compositor componha assim e assado, que vá por este e não por aquele caminho, apenas porque é de bom-tom. Sonekka não é esse tipo de compositor. Goste-se ou não dele. Os caminhos, ele escolheu todos. As opções, idem. As canções, preferiu fazê-las de brincadeira, errando e acertando, pois assim podia se revelar tal como era e construir o que se tornou. Os parceiros, preferiu também escolher todos, e deixar que a verdade transparecesse no resultado das canções. As boas sobreviveriam. As outras teriam tido pelo menos a oportunidade de não ser vítimas de sumário aborto. O importante é que sabe escolher as que entram em seus discos. Bem lá no fundo, acho que quanto melhor a letra que lhe cai nas mãos melhor a canção que nos chega aos ouvidos (e ao coração). Deixemos o rapaz brincar. Será isso, afinal, tão imprevisível assim?


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Ouça algumas das imprevisibilidades de Sonekka aqui:

http://clubecaiubi.ning.com/profile/OXdoPoema


Léo Nogueira - http://www.oxdopoema.blogspot.com/
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