terça-feira, 17 de agosto de 2010

RUY GODINHO – ENTÃO, FOI ASSIM?

.

.

FEMININA
(Joyce)

- Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
- Não é no cabelo, ou no dengo, ou no olhar, é ser menina por todo lugar.
- Ô mãe, então me ilumina, me diz como é que termina?
- Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.

.
Costura o fio da vida só pra poder cortar
Depois se larga no mundo pra nunca mais voltar

.
- Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
- Não é no cabelo, ou no dengo, ou no olhar, é ser menina por todo lugar.
- Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.

.
Prepara e bota na mesa com todo o paladar
Depois, acende outro fogo, deixa tudo queimar

.
- Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
- Não é no cabelo, ou no dengo, ou no olhar, é ser menina por todo lugar.
- Ô mãe, então me ilumina, me diz como é que termina?
- Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar.

.

Então, foi assim...


Hermeto Pascoal costuma dizer que todo mundo canta. Que aquilo
que a gente chama de fala, nós estamos a cantar, assim como os passarinhos. “Eu tenho a percepção desde criança – minha mãe ficava conversando com as amigas dela, e eu ficava perto, dizia: Mãe, ela tá cantando!... Mãe dizia: ‘Não, estamos conversando meu filho, que é isso?!’ ” Para ilustrar o que chamou de o Som da Aura, o Bruxo1 gravou o disco Festa dos Deuses (1992), em que musicou um discurso do ex-presidente Collor (Fx. 5 Pensamento Positivo), o ator Mário Lago recitando um poema (Fx. 9 Três Coisas) e uma filha dele dando aula na piscina (Fx. 8 Aula de Natação). “Estão todos cantando, está tudo lá, afinado. Eu toquei o que eu escutei. Tanto que é a música deles – a música tem o nome deles.”2

A cantora, compositora e violonista Joyce3 concorda plenamente com Hermeto. Diz que um simples diálogo doméstico pode virar música. Pelo menos foi o que aconteceu com a música Feminina, criada por volta de 1976, início de 1977.

Joyce lembra que Danilo Caymmi era freqüentador assíduo de sua casa. “Ele ia muito lá... A minha filha mais velha, a Clarinha, era pequena, tinha quase 5 anos e não conseguia dizer o nome dele corretamente. Só o chamava de Daliu. Clara dizia: ‘Mãe, o Daliu ligou’. Ela atendia ao telefone e dizia: ‘Mãe, é o Daliu que quer falar com você.”4

Talvez, por conta das inúmeras viagens, Danilo passou um longo período sem aparecer por lá. Clara, sentindo sua falta, um belo dia chegou para a mãe e, com uma fala cantada de criança, perguntou: “Oh! Mãe, cadê o Daliu?” Ao que Joyce respondeu – não menos cantado: “Ele tá na Bahia tocando com a Gal.”

Nascia, no diálogo de saudade, a linha melódica de Feminina, onde na pergunta de Clara se encaixa: Ô Mãe, me explica, me ensina. E na resposta de Joyce: Não é no cabelo, no dengo ou no olhar.

“Quando a música pintou já veio com essa frase musical”, explica Joyce. “Aí foi só ir criando a história, tirando tudo o que não era elefante – como diz o escultor – e a coisa foi tomando esse rumo.”

Se a melodia nasceu do diálogo, a letra teve como foco a necessidade de Joyce em responder à sua mãe que a criticava por não ser feminina. “Aí já sou eu me explicando lá com a minha mãe que passou a minha infância toda dizendo que eu não era feminina, que eu não gostava de roupa de organdi. Depois quando eu fiquei adolescente, que eu não gostava de salto alto, de batom. Tinha essa coisa de que isso não é feminino, essa roupa não é uma roupa feminina e não sei mais o quê. Isso era pra provar pra ela, pra minha mãe, que – aí o Freud – que ser feminina é outra coisa. Que não precisa você ser perua para ser feminina. Você pode ser feminina de outra maneira. Então, nessa música, tem eu falando pra minha mãe, tem a minha família falando pra mim.”

Em seu processo criativo, Joyce sempre compõe primeiro a música. “É uma conexão direta com Deus. Eu pego o violão e sempre sai alguma coisa. Na vertical a inspiração é imediata e funciona com a maior facilidade do mundo. Letra já é uma coisa que dá um pouquinho mais de trabalho. E quando eu faço letra eu começo, geralmente, pela sonoridade da música, o que as sílabas estão sugerindo. Depois, então, a música vai tomando o seu rumo. Aí vem o outro processo. Você vai tirando tudo o que não serve pra história. E a partir dos sons você vai contando essa história, que às vezes toma um caminho inesperado. No caso de Feminina, foi assim.”

Feminina foi gravada em diversos momentos da carreira de Joyce. Em 1980, no LP Feminina; em 1989, no LP Joyce ao Vivo; em 1994, no CD Revendo Amigos; em 1996, no CD The Essential Joyce – 1970-1996 e, em 2004, no DVD Banda Maluca ao Vivo. Há ainda o registro em 1979, do Quarteto em Cy, no LP Quarteto em Cy em 1.000 Kilohertz.

“E eu acho muito engraçado é que as pessoas dizem: ‘Poxa, essa música explica tudo’. E pior que explica mesmo. O negócio de ser feminina, o que é ser feminina, o que não é ser feminina. Quer dizer: não é no cabelo, no dengo ou no olhar. É outra coisa. E no fim das contas é uma mandala, porque termina na hora de recomeçar”, conclui Joyce, cheia de feminilidade.




1 Apelido como é conhecido Hermeto Pascoal.
2 www.alomusica.com.br acessado em junho de 2007.
3 Joyce Silveira Moreno 31/01/1948 Rio de Janeiro-RJ.
4 Entrevista concedida ao autor, em junho de 2007, em Brasília.


Ruy Godinho

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário