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O mundo é melhor com "Batuque de Tudo", de Celso Viáfora
Plantada no coração bandeirante fica a fazenda onde mora e obra Rafael Alterio, um sujeito enorme e delicadíssimo, um passional altifalante cuja exuberância contrasta com e se completa na doçura da companheira e parceira Rita, pessoa dessas de beleza e candura que fará o mundo espantado para sempre. Na paisagem aberta e de horizontes amplos como o peito do capo o tempo parece passar um pouco mais suavemente. O dia chega com doçura e o sol da tarde atravessa as janelas para conversar com você. Foi que um dia o casal decidiu construir um estúdio que fosse também pousada, de quartos amplos e cuidadosamente decorados, cada viga, cada paninho sob cada lâmpada de cabeceira, cada tapete escolhidos para trazer sensações de paz e aconchego. O mesmo cuidado se deu na montagem do estúdio, onde Celso Viáfora gravou o duplo CD/DVD “Batuque de Tudo”, que acaba de ficar pronto e faz só confirmar o gênio do compositor, cantor, violonista, arranjador, aglutinador, desbravador ousado cuja carreira cresce com o requinte e beleza que fazem dele um dos grandes nomes de nossa canção em todos os tempos.
E por que motivo falar demoradamente do lugar onde Celso resolveu gravar seu novo disco? Pois bem, fora a parceria com o dono da casa, o compadrio e a velha amizade, fora a atmosfera que ali se respira como em poucos outros cantos, porque Celso teve pretendeu reunir as vertentes nacionais, os sotaques, as falas brasileiras que impregnam sua composição. Aquele estúdio-pousado era ideal para abrigar os músicos vindos da Amazônia – o Nilson Chaves, o Trio Manari -, os instrumentistas da primeira linha do samba carioca – Carlinhos Sete Cordas à frente -, a dinâmica toda própria de seus fidelíssimos instrumentistas de São Paulo – o contrabaixo de Sizão Machado, as cordas dedilhadas ou rasqueadas de Webster Santos, a flauta dulcíssima de Lea Freire -, o urbano do Rio de Janeiro representado por Ivan Lins, o sertão semi-árido baiano na passionalidade pungente de Vicente Barreto, o samba de todos os sotaques dos meninos do Quinteto em Branco e Preto, da periferia da capital paulista e ainda os novos parceiros e companheiro, nova geração de talentos que o mestre adotou – os Pedrinhos Viáfora e Alterio, filhos de quem?, Dani Black, Tatiana Parra, Caê Rolfsen e assim por diante estou falando de alguns). Para que os batuques conversassem. Pois o batuque de tudo só existe se for o batuque de todos.
Celso Viáfora começa a montar cada um de seus discos a partir de conceito muito bem estabelecido e que vai sendo meticulosamente trabalhado ao longo de muito tempo – dois anos, três anos – e quando começa a gravar tem muito claro o que pretende em termos temáticos, de sonoridade, de dinâmicas. Foi assim com o portentoso “Palavra”, CD anterior a este “Batuque de Tudo”, em que a intenção era estabelecer diálogo de sua composição e percepção sonora com outras pontas da ambiência sonora do novo século – sem nenhuma restrição: dos recursos eletrônicos ao coro de pastoras do samba. E obter como resultado nova tradução de seu sotaque, ou a tradução em outra roupagem de sua personalidade, de sua sensibilidade, sem permitir que uma semifusa da digital criativa histórica fosse traída ou que a janela de projeções abrisse para paisagem incongruente. O que fez de “Palavra”, na minha opinião, o disco mais importante da primeira década dos anos dois mil.
Daquela conjunção em “Palavra” decorre, ou avança, o conceito do “Batuque de Tudo”. Em ambos se prega, se não o conceito da bondade natural do ser humano, ao menos sua capacidade de remissão. Nos dois conjuntos de peças está dito os homens não são separáveis por religião, etnia, origem, composto cultural, mas que, em oposição, as características específicas sugerem o entrosamento, a união, o encontro, o aprendizado e o enriquecimento da sabedoria, da generosidade – a harmonia que pressupõe um mundo melhor, de gente maior e mais delicada, de seres carinhosos – sem perder a capacidade crítica -, feitos para o acolhimento e, se for o caso, o perdão – sem deixar de lado o exame das cláusulas pétreas do caráter, da honestidade, distinção, respeito, boa vontade, paz na terra aos homens de.
Não é à toa que as divindades, as criaturas que o homem cria para nelas espelhar-se, os seres divinos a que cada cultura dá diferentes nomes e para quem cria rituais de infinita diversidade – estejam presentes na obra. Com atenção para o fato de que o exame das mitologias é antropológico, não religioso. E precisa estar ali porque Celso canta o mundo e seus ritos – a família, os amigos, as relações de sociedade, os entendimentos e as distâncias. O que é, com rigor, coerente com a ideia de juntar todos os batuques brasileiros – não, todos não, aqueles que o tocam, que incidem sobre seu verbo e seu pulso, aqueles com que tem contato mais íntimo – num mesmo lugar, durante uma semana, para o registro das canções em áudio e vídeo, ao vivo, sem maiores retoques do que os exigidos por alguma circunstância imprevista.
No fim das contas, as 13 canções do CD e as 19 do DVD reiteram o ideário de um artista que se faz guiar antes de mais nada pela retidão de caráter. E aí vem a música. E aí vem a poesia. Seria talvez exaustivo falar das músicas, cada uma, o marabaixo e a toada, o batuque nortista e o eco da chula baiana, o ronco do surdo do samba remetendo aos terreiros desse País sem fronteiras – do Curiaú à Tia Ciata e daí às transformações em que outros sotaques e novas tecnologias possam resultar. É tedioso ler sobre o que foi feito para ser ouvido. O papel do escriba é tentar fazer com mais pessoas saibam das maravilhas contidas no “Batuque de Tudo” – e no resto da obra de Celso Viáfora – e mais pessoas procurem por seus trabalhos gravados, suas apresentações ao vivo. Porque de cada audição, de cada momento passado na platéia, o ouvinte, o espectador, sai pessoa mais rica e generosa, por contágio, doce contágio.
Eu disse lá em cima que “Palavra” é disco mais importante dos primeiros anos do nosso século. No começo de uma nova década, “Batuque de Tudo” tem a beleza e a seriedade – e a alegria, a esperança, o humor, a indignação sem a qual nos imobilizamos, o critério (ou seja, o caráter assertivo, o cuidado com as afirmações, o tom humanista e a crítica do mau uso das qualidades positivos, da usurpação da bondade, da crença, para usos espúrios) para assumir papel idêntico. Como um passo à frente, pois é para a frente que se anda.
Em tempo: o DVD “Batuque de Tudo” não tem pirotecnias, não é compilação de clipes ou ilustração do que a canção quer dizer. Trata-se do registro das gravações, com algumas falas, uns poucos depoimentos. É, sobretudo, o registro visual de um encontro feliz de virtuoses em sintonia absoluta, em que cada nota, cada sílaba, cada acento rítmico foram escolhidos, meticulosamente escolhidos (mesmo quando alguma coisa nasceu no calor do momento) para fazer do mundo um lugar melhor. Ainda que por alguns momentos. Mas essa é uma outra questão.
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Mauro Dias - http://mauromaurodias.blogspot.com/
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