Existem dois grupos de seres iluminados: o grupo ao qual pertencem, por exemplo, Noel Rosa e Chico Buarque, cujo brilho é capaz de cegar já à primeira vista; e o grupo que tem como membros, entre tantos outros, Cartola e Luiz Gonzaga, cujo brilho vai ganhando intensidade com o passar do tempo, como um lampião a gás que se transforma paulatinamente em holofote. Os primeiros parecem brilhar como o sol, naturalmente; já os
segundos forjam sua iluminação com o suor do trabalho árduo de cada dia, até que o metal resplandeça e tudo pareça tão simples que nem se perceba o quão complexo foi chegar a tal.
A este grupo pertence Élio Camalle. Cantor que emprestou seu talento aos bailes e bares da vida. Crooner, aprendeu a ser cronista do que viu, ouviu, viveu e cantou. E como cantou! O vasto repertório do cancioneiro brasileiro já saiu por seu gogó noites a fio qual fosse oração. Jovem, produziu-se, virou artista antes de sê-lo verdadeiramente. Mais estética que atitude. Mais gana que graça. Cabelos longos, roupas de estreia, poses pra fotografia, fumaça de cigarros, degraus e quedas; Camalle, imaturo, queria subir, como seus ídolos. Versátil, camaleônico, aprendeu a cantar o que era deles melhor que eles e a compor como eles. Nessa época aprendeu a fazer Mágicas. Acreditou que o sol degelaria o coração que já não saltasse; correu atrás de alheias morenas anarquistas, "pra lá de meia-noite, pra cá de Bagdá"; cantava um velho coração batendo dentro de um peito que pensava ser o seu, mas no seu batia um jovem coração de um anjo feliz e selvagem brincando de ser rei alucinado. Era bonita a roupa, pá, mas o rei estava nu.
Acreditou na magia fazendo truques. Sobreviveu Gabriela, mas Camalle tinha que se afastar dos ídolos, de forma doída, voltar-se a si e ao que queria que esse “si” fosse de fato. Entranhou-se. Estranhou-se. Embrenhou-se na selva do ser, e, assim, voltou ao início pra recomeçar, diferente. Doeu, como dói o parto, como dói a partida. Nessa época foi rebento, Cria, criança, brincante. Perdeu a cabeça no meio da rua. Viu seu crânio rolar pra dentro da boca de lobo, cheia de juízo. E ouviu sua voz, vinda "dos gritos de negros escravos", "dos povos aflitos de revolução". Pedia pra ser deixado só, não queria mais a influência, queria estar cheio dos sentimentos mais puros que habitavam seus guetos. Deixou que seu silêncio, que sofria de carência, falasse pelos cotovelos e contasse histórias sem pé nem cerebelo. Um silêncio que produzia "ruídos vilões de paixões abaladas, baladas em decibéis incompatíveis com as normas do condomínio" dos velhos astros, arrastando os pés e transbordando vasos sanguíneos. Lembrou-se das coisas que seu pai dizia sem dizer. E, pra não perder a juventude e resolver sua vida no Viaduto do Chá, deixou-se errar à vontade, como todo jovem. Errando, adolesceu e cresceu. Seu caminho era quase seu.
Crescido, passou a indagar acerca de sua existência. Foi mesmo às cruzadas em busca de seu graal, que, se não era santo, ao menos lhe era sagrado. Mosqueteiro, foi um dos quatro cavaleiros de um apocalipse que não veio. Os demais eram Luiz Gayotto, Madan e Kléber Albuquerque. Um do um do um. Um por todos e todos por um. Aprendeu a conjugar seu verbo, que era singular, no plural. O século novo chegou e o que era um do um do um virou cada um pra si, cada cavaleiro indo lutar suas próprias batalhas. Camalle se viu só outra vez. Ficaram as canções...
Mas agora ele era adulto já. Aprendeu a dar a volta ao mundo sem sair do “si”. Já não era truque. Era troca. Nessa época foi além de Antes e Depois do Fim do Mundo; viu édens e apocalipses diários; exibiu seu planetário; "só, a ver navios", colecionou desvarios; e percebeu que o que se esperara guerra nas estrelas era, na verdade,"guerra no chão da cidade". E que "não há bem que sempre dure, nem mal que não se acabe". A via láctea era pouco. O sistema solar era pouco. Ser um só era pouco. Provou da fruta dos camarins. Aprendeu que "só existe agora", qualquer que seja o hoje. Sugou da vida o ouro, o marfim. E, quando pensou que havia chegado ao fim, descobriu que o fundo do poço é um fundo falso. E abriu a caixa (de papelão) de pandora.
Foi então que aprendeu a ser bicho preto, cão farejador. Aceitou sua natureza. Despiu-se de máscara, de casca. Já não bastava ser adulto. Foi assim, chorando no tempo, que o velho menino deu-se conta de que sua ruína sem saída era, na verdade, e por que não?, o caminho. E que não tinha que subir, como seus ídolos, tinha, sim, que, ao ver as placas de "pare", seguir em frente, como o Pedro Archanjo da Tenda dos Milagres de Jorge Amado. Desceu da cruz autoimposta, olhou nos olhos do boi da cara preta e viu um bicho bobo e sem sal. Percebeu que não "existe uma prisão mais perpétua que essa: o nosso próprio umbigo". E foi assim que se deu. Suas mágicas, revoltas, destruíram seus mandraques. Era, enfim, o fim de uma lida, o começo de outra estrada. Sem mágicas. Sem truques. Restava agora só o homem, despido de personagens, sobrevivendo a água, pão e poesia, justamente este homem a quem ele não dava nada, nem a ponta do cobertor, o bicho dentro da casca.
E foi assim que, sem que se desse conta, Camalle aprendeu a voar, pois percebeu que "a dor dá asas" e "a gente voa sem geografia. Mesmo que doa, dá à pessoa a sabedoria". Quando descobriu, reconheceu seu bartruque e aprendeu a felicidade. Não a de Tom Jobim, muito menos a dos "baladeiros, sambistas, MCs, torcedores e funkeiros", mas a sua, a felicidade de um homem só, que sabia fazer festa da solidão, esta mesma solidão que lhe "abriu a janela e disse 'clique aqui e seja feliz'". Foi o que ele fez. Agora ele podia gritar às Yolandas, Madalenas, espanholas: "Eu não te amo mais!" e buscar "um caso que case com o dia de hoje" e que só vá embora quando ele morrer. O chato mesmo é que agora ele é realista! Descobriu que sua doença moderna é a própria cura. E ele, que nem nadar sabia, flutuou de alegria quando se deu conta de que há "esse mar de opções, esse mundo contramão, esse santo livre arbítrio, o divino sacrifício de mudar de opinião". Na dúvida encontrou seu Deus. Ele, que havia visto seu crânio rolar "pra dentro da boca de lobo", reencontrou-o, este "crânio duro [...] que não pensa" no que foi. Agora está pronto pra ensinar as coisas que aprendeu sozinho. Iluminou-se.
Alguém poderá me perguntar como posso afirmar isso tudo. E eu responderei que estive a seu lado todos esses anos, seu irmão mais novo, copiando-lhe os erros, aprendendo com seus acertos, discutindo, brigando, parlando, compondo, bebendo, rindo, chorando, aprendendo com ele a ser único, ensinando-lhe um pouco também, enfim, compartilhando essa vivência que só a amizade dá de graça. E vale ouro. É deste ouro que estou falando. Este ouro que o tempo forjou e que hoje se chama Élio Camalle, um dos artistas mais completos e criativos do Brasil. Um cara que pesa e sabe o que compõe e o que canta; domina (e doma) o palco; suinga e sangra; sua e soa; é movido a energia solar, pois aprendeu, na oficina do tempo, que o brilho da originalidade, embora não sendo fácil de ser obtido, ou por isso mesmo, quando alcançado, passa a fazer parte do indivíduo, irremediavelmente. Nesse patamar, a inspiração é tão natural e imprescindível quanto a respiração.Hoje é dia de estrelas. Hoje é dia de ver, ouvir e provar Élio Camalle.
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Ouça algumas canções das várias fases de Élio Camalle aqui: http://clubecaiubi.ning.com/profile/OXdoPoema
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Por Léo Nogueira http://oxdopoema.blogspot.com/
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