quarta-feira, 4 de maio de 2011

SERTÃO DO SÃO MARCOS - Ojero

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Gostar eu gostava, não só do velho mas da lida toda, dos companheiros, o saber dos caminhos, vida de tropa, gostava sim. Importava com carga muita não, passar nos facões e nos serrotes era pior, mas muito, não. Às vezes, as bruacas até rangiam no esforço do descer e subir. Comer, só no bornal, o milho que o velho escolhia para dar trato do de melhor. Assim era o cuidado com a pisadura, na hora de pôr as peias.


Nos caminhos, gostava mais do trato, zelo de Baldino colocar a cangalha no lombo, encabrestar, arrochar a cincha, abotoar o peitoral, descer a retranca e enlaçar as alças no cabeçote dos alções. Arrumar os sacos, bornais, surrões. Fazer os contrapesos e amarrar o ligal no arrocho, com o cambito, e soltar o cargueiro. Depois amarrar os guizos nos peitorais e cabeçadas.


O ruim era o carrego, quando o velho deixava por conta do empregado do seu Vieira. Muito desmazelado aquele sujeito, quantas vezes a carga caiu com o cambito frouxo. E a vez que ele deixou cair ali mesmo uma lata de querosene, e derramou. Quase pôs fogo em tudo, porque o passante estava riscando a binga para acender o cigarro de palha.


O descarrego, esse, Baldino nunca deixava ninguém pôr a mão, por causa do equilíbrio da carga. Quando parávamos no pouso, depois do descarrego, ele escovava um por um, naquele jeito dele de pôr reparo num trote a mais, na guia descuidada ou num descer facão mais brusco.


Eu só desacorçoava quando aparecia um corte para varar. Uma a uma no trieiro e não rendia o caminhar, parecia que estava passando de novo no mesmo lugar. Agora, quando chegava no tope do morro, principalmente no Cobertão, dava gosto enxergar tudo dali de cima. O velho também gostava desse lugar, sempre o preferido do pouso.


Trote era o que ele mais punha reparo.

- Só serve prá cansá o animá e num omenta a paga. Dizia.

Nesse ponto tinha razão. Só o Pacu achava que não, gostava dum trote. Quando distraía e punha marcha, me passava na cabeçada chacoalhando os guizos mas, quando percebia, emparelhava comigo, no respeito.


Gostava muito não, quando Baldino negociava com pólvora e carga muita, ainda mais que o palheiro num saía da sua boca hora nenhuma. Ou então quando tinha muito negócio com couro, aquilo fedia demais.


Minha preferência era quando carregava fumo com contrapeso de rapadura. O cheiro bom, o peso distribuído melhor e não tinha perigo.


Nos pousos, enquanto Baldino negociava ou contava as notícias da política para os figurões, cada um com a montaria mais bonita que o outro, era o de bom, cada mulinha mais formosa. Aquelas arreatas, muito bem cuidadas, uma boniteza. A companheirada gostava da alegria dos olhos.


Mas meu querer mesmo estava ali, do meu lado, e ela era bonita demais. Nova, castanha, o pêlo brilhava de longe, e os olhos, no jeito de me olhar, minhas pernas bambeavam. Vaidosa na medida da sua boniteza; sabia enroscar seu pescoço no meu, na demonstração de bem-querença. Tão alegre e vezes tão triste.


Quando conheci novinha demais, mesmo assim, pus o olho nela e fui criando, no acompanho dela crescer, o amor todo.


Baldino punha muito gosto em agregar ela na mulada, de vez em quando me falava no ouvido, enquanto escovava meu pescoço:

- Um dia nóis agrega ela, Ojero.


O dia chegou, e nesse dia foi tristeza demais que chegou junto. Foi dela que Joaquim, melhor amigo de Baldino, caiu. Foram suas patas que resvalaram nas pedras do Vau do Lajeado, derrubando ele.


Nunca vi tanta tristeza como a de Borborema, naquele dia, puxando a carroça de parelha comigo. Desconsolo demais, nem prestou atenção quando Baldino fez a paga para levá-la.


Parecia até, que no enterrar Joaquim, também dela um pedaço ia junto.


Seguindo caminho, ela do meu lado, vez em quando enroscava o pescoço no meu, olhar escorrendo tristeza. No choro dela.


Todas as vezes que a tropa chegava no pouso do Braço, Baldino me desencangalhava primeiro, depois Borborema, abria a porteira e nos soltava no rumo do cemitério, onde passávamos horas, ela meio que chorando. Depois, a volta, bem juntinhos num silêncio só.


Borborema ao meu lado, guiando comigo a mulada no tempo passando. Às vezes, a alegria está toda nela, como antes. Em outras, a tristeza toma conta. Quando a alegria vem, Baldino percebe e fala no meu ouvido.

- Hoje Joaquim tá aqui cum nóis.




Leia a obra completa aqui: http://sertaodosaomarcos.blogspot.com/

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