segunda-feira, 24 de maio de 2010

Tranca de Rio - SERTÃO DO REINO

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Tranca de Rio




E muitos vinham tirar água do manadeiro, escravos, alugados, de ganho, forros, mestiços curibocas, mamelucos e cafuzos. No lugar, quase ermo, próprio para bebedice, fartavam-se de cachaça, taniça e achavam tempo para emboança e arrelias.

O mais antigo aguadeiro, Tranca de Rio, negro congo, pés grossos e disformes, alforriado em recurso de compra, à noite, fazia babaçuê no mato perto do Sumidouro onde evocava elementos, orixás e calungas, num batuque remedado das matracas, dali tirava pagas em aguardente e fumo que vendia aos demais. Durante o dia, mantinha a freguesia de água, alugando braços ou cobrando favores dos iguais.

Das imediações do Pau Água quase nunca saía, era também uma espécie de conselheiro para qualquer assunto. Sabia ouvir e, com muito jeito, arrancar e contar segredos. Nada se passava na cidade sem que soubesse com detalhes. Ria muito, por qualquer coisa e seu riso parecia contaminar o corpo todo num tremor que findava nos pés desproporcionais, batucando o chão como tocasse tambor de revira.

O respeito foi adquirindo quando comprou a alforria e nas todas vezes que socorria quem necessitasse. Paravam na rua para falar com ele como fosse um principal. Padre Batista o chamava pelo nome. Não recusava nenhum convite pra esmolar, até conduzia a imagem do santo, puxando as rezas da igreja. Sabia todas, parecia professar a fé católica.

Tranca de Rio ouvia contar da política, das perseguições e deserções com atenção disfarçada, comendo farofa de manicoaras que levava pronta no farnel surrado, sempre amarrado na cintura. Dali abastecia, do que descobria acontecer entre os reinóis e os estrangeiros abastados, sua gente que se armava para lutar contra a escravidão e a miséria.

Fazia delato na conveniência de sua justiça, sempre dizendo ouvir dizer, confidenciando ilícitos de funcionários, militares, meirinhos, desonestidade de grandes comerciantes, lascívia de senhores com índias e escravas. De suas conversas saíam fel e mel, nunca diretamente ao interessado, sempre por intermédio de algum aguadeiro familiar às partes envolvidas.

Se arvorava arrumar o errado por via das rezas que dominava e de fazer correr a verdade no meio dos enganados, prevalecia seu julgamento. Ninguém percebia, que seu jeito simples e risonho, esmolando nas casas, ouvindo escravos, disfarçava um zeloso seguidor do padre Batista.

Ao mesmo tempo que servia a todos, obtinha, com seu riso, parecendo um cacoete, informações importantes que fazia chegar à casa do padre através do velho Bartolo.

As armas começaram a surgir em meio a deserções, no escuro das madrugadas, provinha do alistamento obrigatório, da perseguição ao padre Batista em fuga pelo interior, dos foreiros chamando quem quisesse lutar. Sem que ninguém soubesse, Tranca de Rio aliciava os descontentes, falava da abolição prometida, induzia escravos a fugir, índios e mestiços a se juntarem no interior com os pequenos grupos que iam se formando.

O repicar fúnebre dos sinos começou junto com a manhã em todas as igrejas. Tranca de Rio recebeu a notícia sério demais, como não era seu costume ser. Padre Batista era a esperança de tanta gente, quem iria se opor as injustiças, quem iria lutar nos corredores dos palácios contra os reinóis. Queria pôr-se a caminho das matas de Nazaré, mas foi incumbido ficar por Bartolo. Mais que antes, precisavam juntar gente para a luta que estava próxima, ficar atento nos sinais combinados, marcado o ataque, saberia e se incorporaria à luta.

Os dias passavam com uma lentidão medonha, quase ninguém aparecia para tirar água, alguns largavam o pote e se embrenhavam no mato sem falar nada, prenunciando um conflito como nunca visto. Por ali passavam famílias inteiras carregando seus poucos pertences, pedindo rumo a Tranca de Rio, falando no assassinato do padre, mesmo depois de se confirmar sua morte natural, imputavam culpa aos reinóis pela perseguição que lhe faziam, obrigando a vagar, sem recurso, pelo interior da Província.
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As milícias se postavam na saída das igrejas prendendo qualquer um que tivesse idade de lutar, alistamento obrigatório ferindo leis de exceção, exacerbando as famílias. Nos navios fundeados, uma movimentação nunca vista. Foram os primeiros efeitos que aquela morte produziu. Com os dias passados, tudo voltava ao normal na Cidade do Pará, mas o interior fervilhava, lideranças apareciam em todos os lugares. Armados do que dispunham, foram se concentrando e formando pequenos grupos, encorajados pela indignação de suas misérias.

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No escuro, Tranca de Rio esperava amainando a impaciência com goles cada vez mais fartos de aguardente. De repente, a fuzilaria começou, seguida de ordens e assuadas. Com a borduna em riste, partiu para o rumo do embate, rindo com todo o riso do seu natural, o corpo dançando no meio do fogo cruzado, num sapateio envolto por fumaça, cheiro de pólvora e gritaria, mais bizarro ainda quando as primeiras balas quebraram seu corpo, acelerando os movimentos do tronco, atingido muitas vezes, não parou de bater os pés, como se dançasse dois ritmos diferentes ao mesmo tempo. Parte do corpo dançava seu riso e o outro sua morte. Tranca de Rio findou estendido, estrebuchando, mexendo os pés como se estivesse rindo.


MQ

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