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Isabel
Isabel, seu nome. Descendia dos açorianos da Rua São Vicente, na Campina; daí a beleza vinha, retida na maneira elegante de se vestir; esparramava por onde passasse uma sensualidade impossível de não perceber. Viúva na flor da idade, provocava a atenção dos homens e uma enorme inveja nas mulheres. Eles não perdiam a oportunidade de cumprimentá-la com cortesia e aquele ar malicioso de oferecimento que ela respondia com a indiferença de um leve movimento e um disfarçado sorriso no rosto.
Vivia na Rua de Santana, no casarão construído pelo finado engenheiro e botânico alemão Hans Wannier, seguidor das idéias do conterrâneo Grunfelts de transformar a cidade numa nova Veneza. Vivia só, pois filhos nunca tiveram. Do marido herdou a casa, alguma renda, o pomar farto, uma coleção de livros, pinturas e máscaras e os dois escravos: Luluce, a mucama e o negro de ganho Rafael.
Saía de casa todos os dias somente para a missa, olhar de viúva, discreto mas penetrante, sempre acompanhada pela mucama, sua sombra até na janela onde costumava ficar toda tarde, nos primeiros sinais de noite chegar. Com o tempo muitos desses hábitos foram mudando
O negro de ganho Rafael sempre chegava da olaria quando as duas estavam na janela e mal entrava recebia as ordens domésticas ou a incumbência, sempre de Luluce, levar carta para algum cavalheiro já conhecido, ou sair com ela para apontar o destinatário pelas ruas. Entregue o convite voltava pra casa e se recolhia nos fundos de onde era proibido sair.
Luluce preparava o banho com cheiros e óleos e assistia a sinhá se preparar com languidez. Ajudava a colocar a máscara de couro colada ao rosto, prender o cadeado, vestir sobre o corpo totalmente nu a capa preta e o capuz. Era como uma sombra no meio da noite, saindo pelos fundos para o ermo; ia sempre só se entregar ao cavalheiro escolhido naquele dia entre os que passavam em frente à janela do casarão ou aos que encontrava no caminho, quando ia à missa e mostrava alguém de seu interesse à escrava.
Foi assim desde o terceiro mês de viuvez, quando começou a experimentar as máscaras que o falecido deixou e encontrou aquela de couro que lhe cobriu o rosto como uma segunda pele despertando sensualidade e a volúpia que escondia no corpo e na alma.
Com a máscara no rosto e a noite entrando pelas janelas, desceu os degraus da cozinha, ouvindo os gemidos abafados, era Luluce e Rafael enleados em carícias e suores. Isabel apagou a vela, aproximou-se da fresta, e dali ficou olhando extasiada, parecia um sonho, cada movimento deles fazia seu corpo vibrar, sentia rubor no rosto por debaixo da máscara, as pernas tremiam de desejo. No despudor se possuíam, nunca pudera imaginar possível ferocidade, ao mesmo que aquela suavidade os levando a uma espécie de delírio.
Voltou na escuridão para seus aposentos onde passou a noite quase toda acordada lembrando do marido, do quanto era doloroso não tê-lo em seu corpo. Nunca o vira nu, ele a ela também não; nos dois anos de casamento a usara calado, sempre às mesmas horas da noite, sem pa-lavras, do mesmo jeito. Ela contida gostava, queria mais; ele não, era sempre assim, igual, mas gostava.
No outro dia, ficou na janela, esperando a noite chegar inteira, para espiar o casal. Encontrou-os no escuro, dormindo. Voltou ao seu quarto, ansiosa, e começou a mexer nos livros do marido. Botânica, engenharia... folheando um por um sem qualquer curiosidade, apenas passando as páginas, ajudando a consumir o tempo.
Absorta, quase não percebeu aquele de capa vermelha, lisa, sem nenhuma identificação. Abriu ao acaso e começou a ler as histórias da corte veneziana que lhe chamaram a atenção pela descrição de formosura das cortesãs, a liberdade que tinham. Pôs-se a ler sem parar, só se dando conta do dia já estar claro com as batidas de Luluce na porta.
Passou o dia revirando os livros, ansiava encontrar outros, queria ler mais, saber mais, o assunto a interessava muito. Não foi à missa, esperou com ansiedade a noite para espiar os escravos, mal se continha para não fazer perguntas a Luluce.
Como na primeira noite que os viu, vestiu a máscara se olhando no espelho, sentindo-se a própria cortesã mascarada dos contos lidos, tirou toda a roupa e, nua como no livro, vestiu a capa preta com capuz. Esperou pelo silêncio das horas, apagou a vela na cozinha e desceu os degraus até os fundos.
Os dois se tocavam embevecidos com seus corpos, emitiam sons indefinidos, se cheiravam, se lambiam como animais. Seus corpos, molhados de suor, luziam nas sombras mortiças da vela. Isabel, na posição que estava, via Rafael por trás, o dorso, as nádegas sustentadas pelas coxas musculosas, passeando pelo corpo de Luluce que delirava de prazer. Naquela noite, viu o negro de frente, enorme, túrgido, com um vigor assustador, tomar a negra de todas as maneiras. O suor molhou Isabel, o corpo ardeu em desejo, relembrado em todos os instantes do dia seguinte.
Acostumou-se àquele ritual, de se preparar para vê-los todas as noites; numas apenas os encontrava dormindo vestidos, noutras os via nus se confundindo com a escuridão. Mas, quando a vela no quarto estava acessa, os momentos eram de êxtase. Isabel bebia com o olhar o corpo de Rafael e cada instante de lascívia dos dois.
Nunca poderia imaginar o que lia nos livros encontrados e o que via nas noites de Rafael e Luluce. Seus pensamentos agora obedeciam às sensações que sentia, olhava discreta, imaginando os homens nus, mesmo na igreja onde passou a ir menos. Olhava o padre celebrando a missa e se imaginava em Veneza onde os mais abastados, fossem do clero ou não, tinham seus encontros com as cortesãs.
De Luluce queria saber mais sobre os negros, ensaiava perguntar por que não apagavam a vela, qual a sensação de algumas carícias que presenciava. O animalesco do que via ao mesmo tempo que a assustava, a atraía. Queria viver aquilo sem se sentir em pecado. Pensava na luxúria dos venezianos, lia no livro cenas da cortesã com seu confessor e se sentia roubada de uma parte da vida, talvez a que quisesse mais ter vivido.
Escolheu o primeiro, moço ainda, um vigor que nunca experimentara. Escreveu a carta com o convite recomendando ao escravo que nunca revelasse o missivista. Naquela noite, sem que o casal de escravos soubesse, o encontrou na grande samaumeira das matas de Nazaré. O jovem, ao vê-la abrir a capa, sua nudez perfumada de um desejo profundo, a perfeição do corpo e o rosto coberto com a máscara, assustou-se e correu como um louco. Ela voltou para o casarão certa de que nas cartas deveria mencionar que usaria uma máscara, para não assustá-los que assim o fazia para não ser reconhecida por ser casada e recatada.
O rapaz no outro dia perguntou ao negro Rafael quem lhe enviara a carta. Este respondeu, como recomendado, não conhecer a dama, apenas entregava recados para quem se dispusesse a pagar alguns tostões.
Daí, sem que nunca se dissesse nada, Luluce e Rafael foram conhecendo o segredo de Isabel, lutuosa na igreja, na janela do casarão e aos olhos de quem a visse mas, em algumas noites, era a dama nua, mascarada que se encontrava nos braços de quem escolhia para se ter.
Os escravos, sem nenhuma demonstração de conhecer seu segredo, foram ajudando a enumerar lugares ermos onde Isabel pudesse marcar os encontros, falavam no correr do dia de um lugar assim para que ela ouvisse. Comentavam a chegada dos navios, os negociantes, militares e cavalheiros que desembarcavam como se ela não estivesse prestando atenção. Com o tempo, Rafael a seguia de longe como o guardião do querer da ama.
Perto do Sumidouro, no fim das ruas do Rosário, da Alfama, da rua dos Cavaleiros, na casa abandonada na rua Formosa e, nos casos mais especiais, na samaumeira das matas de Nazaré; alternava os encontros para lugares diferentes, era sua segurança, depois do francês que passou muitas noites tentando surpreendê-la nas imediações do Sumidouro.
O tempo passava e Isabel com a cumplicidade do casal de escravos ia ousando cada dia mais na escolha dos destinatários de suas missivas, ao mesmo tempo que se acautelava no conteúdo delas; ora escrevia em francês, ora se dizia uma dama passando temporada na cidade, que era filha de reinóis. Ora pedia a Gabriel que desse a mensagem para outro escravo entregar.
A segunda carta que mandou, escolheu outro rapaz bem jovem, filho de ingleses, de olhos claros e penetrantes. Ao se aproximar, o viu caminhando de um lado a outro, sem percebê-la. Sentiu a sensualidade tomar posse, abriu a capa forrada de cetim vermelho deixando-a presa somente no pescoço. A curiosidade dos olhos do rapaz nem pôde se deter na máscara, o corpo de Isabel, contrastando com o vermelho do forro da capa e a generosidade do luar, o enfeitiçou. Em minutos, com o refinamento das cortesãs ela o deixou nu, com a intensidade e despudor que vira nos seus escravos o possuiu entre gemidos e soluços, beijando e cheirando seu corpo todo, cobrindo a carne rija e jovem com a sua volúpia e mistério.
Isabel vivia para aquelas noites, andava com desenvoltura pelas sombras das ruas, evitando as ratazanas, o escravo lhe seguia os passos mas nunca se aproximava muito do local dos encontros, ficava a meia distância, pronto para protegê-la.
A cumplicidade aumentava a cada dia que passava, os escravos percebiam quando a senhora não gostava do encontro, era quando ela mais os espiava, às vezes noites seguidas e, quando mais se mostravam, mais a luxúria impregnava nela e neles. Cada carícia, cada olhar, o desejo ardia por horas, num prazer constante.
Luluce quem primeiro viu o ajudante do comis-sário das demarcações hospedado da fazenda Val-de-Cans, discretamente o apontou. Isabel lhe escreveu em perfeito espanhol. Os dois se tiveram madrugada adentro, o único com quem ela esteve mais de uma vez para estranheza dos serviçais, acostumados aos inúmeros destinatários das cartas. Intrigados, uma noite, Luluce resolveu ir junto a Rafael, de longe, acompanhando a ama.
No casarão abandonado da rua Formosa, a escrava quis chegar mais perto e espiar. O que viram os deixaram extasiados. Isabel sem a máscara e a capa, o cavalheiro nu a amava com energia e ao mesmo tempo com tanta suavidade que seus corpos pareciam exalar uma luz entrecortando o luar vazando do telhado arruinado. Parecia uma pintura, na verdade era um nascimento.
Poucos dias se passaram até ser encontrado o corpo nu, sem um vestígio de quem fosse. No embarque dos espanhóis para o Equador, deram falta do oficial, desenterraram o desconhecido, era ele, comprovaram.
O negro Rafael que voltava todo dia com a carta a ele destinada, trouxe a notícia. Isabel, em prantos, ficou trancada por muitos dias, lembrando cada instante com o amante espanhol. Desgostando de olhar os escravos pela janela, desinteressada de escrever outras cartas, entristecia um pouco todo dia.
O casal de escravos procurava agradá-la nas menores coisas, mas entristecia com ela. Para eles, a alegria veio com a gravidez de Luluce e contagiou Isabel. Um vestígio da cumplicidade voltava a rondar, uma carta foi escrita mas o encontro não se deu. O cavalheiro não apareceu. Outras houve, mas nenhum dos destinatários foram encontrá-la.
Isabel nem importava, voltou a espiá-los. Os dois não eram os mesmos, ou seus olhos não viam igual antes, pensava. A tristeza voltava. Olhava Rafael com desejo de vê-lo com Luluce no despudor que a incendiava de desejo. Não via. Acostumou a não escrever mais, não usar a máscara e raramente ir vê-los.
Já era muito tarde da noite, quando ouviu chamar. O archote na cozinha aceso fazia as sombras da parteira, bruxuleando, parecer mau agouro. E era. A criança tentava nascer do corpo morto da mãe. Luluce parecia dormir serenamente. Rafael encurvado num canto chorava sem lágrimas. A criança viveu um instante apenas.
Foram tempos de muitos silêncios, nem a estabanada tapuia trabalhando na cozinha com a escrava alugada conseguia um ralho da senhora. Rafael chegava e dava contas a Isabel cabisbaixo, sem palavras. Um dia, surpreendeu o escravo a olhando de maneira diferente, enxergou desejo. Sentiu desejo.
Sozinhos, uma noite, pediu vinho do porto e lhe ofereceu uma taça; pediu que sentasse e começou a ler a história da cortesã mascarada visitando o príncipe mouro. Nem chegou a metade, olhou para o escravo tentando ver sua reação. Ele estava dormindo sentado com a taça quase vazia na mão; parecia que o cansaço e uma tristeza estranha o possuíam.
Isabel fechou o livro, olhou por instantes Rafael adormecido e, sem acordá-lo, foi se recolher com uma ponta de malícia sorrindo nos lábios, depois de buscar a máscara e a capa de cetim e deixá-las do lado dele.
MQ
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segunda-feira, 10 de maio de 2010
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