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Murtinho e Rosina
Os dois se acostumaram a entrar nas casas abandonadas, sorrateiros e silenciosos, parecendo ratos, cada dia escolhiam uma.
Murtinho, negro cambaio, quando ficava nervoso ou ao andar, balançava muito os braços, Rosina muito gorda, bochechuda, ria por qualquer coisa. Ambos filhos de escravos brutos, desde pequenos viviam juntos, primeiro no engenho Salvador, ela puxando canga de bois na moenda, ele engarrafando a aguardente destilada. Considerada desde nova fêmea de Murtinho, Rosina fazia por onde, estava sempre perto dele, rindo e fazendo rir.
Arrematados em leilão judicial, por pendência de separação, foram fazer farinha na fazenda Mucucuri, lá trabalharam a mocidade toda, ele na lavoura, ela no poço tirando casca, amassando, ralando mandioca puba e dando curera às criações.
Os novos donos, muito católicos, não aceitavam nenhuma prática africana entre os poucos escravos que tinham. Todos eram batizados e freqüentavam a missa aos domingos. Com o tempo, deram conta da idade já chegada e oficializaram, na igreja, a união de Murtinho e Rosina.
Dali só saíram quando a moça Deodora casou com o diplomata e importador francês Philipe D’artang e os recebeu como presente de casamento.
Nunca tinham visto uma cidade grande na vida, a banda de música tocando na frente do Palácio foi o primeiro deslumbramento dos dois que riam como duas crianças, chegando a perturbar a apresentação dos músicos. Andaram pela rua dos Açougueiros, no caminho da casa nova, assombrados com o tanto de gente, mais ainda com o mascarado tocando tambor e fazendo seus anúncios. A sinhá na frente com o marido, se divertiam com a alegria deles.
Foram anos de brandura na vida de Murtinho e Rosina, serviço só o da casa, os donos sem filhos, sinhá vaidosa, ia muito com o marido a festas, recepções e reuniões elegantes, às vezes os deixava sair para ver a banda, maior felicidade não havia.
A política fervilhava em volta do casal, fosse na casa dos donos, na rua ou na conversa de escravos e mestiços, eles alheados, viviam rindo, nem prestavam atenção. Gostavam mesmo era de imitar o jeito de falar e os gestos das pessoas importantes que viam de longe no Largo das Mercês, na missa. O jeito de comer e de andar dos donos.
Murtinho, apesar do desinteresse, ouvia quando ia buscar, na casa importadora, o da despensa, falar, pelos outros escravos que faziam mercância ambulante, carregadores, entregadores, mensageiros, alugados e até pelos mestiços, o que acontecia, política de uns e de outros – exílios, demissões, alistamentos, anistias, leis do reino, abolição, deserções, roubo de armas. Fingia interesse, contava tudo a Rosina e incorporavam o que ele ouvia nas brincadeiras que faziam imitando os abastados ditando as leis.
Souberam pela gritaria na rua, os cabanos tinham tomado a Província, sinhá andava de um lado para outro, preocupada com o marido que saíra de madrugada, parecendo saber da invasão. A assuada tomava conta das ruas, entre vivas, o povo saudava seus líderes. Murtinho e Rosina custaram entender a seriedade da hora. O saque na casa importadora fez com que fossem parar no convés do brigue Conquista, para estranhamento da escrava - apesar da novidade, tinha medo do balançar nas marolas. Assim que sinhô soube, escreveu ao novo presidente por via do consulado francês. Em menos de um mês, estavam todos de volta, o prejuízo ressarcido e a vida no normal.
Durou pouco tempo a calma nas ruas, Murtinho vinha contando que nada mudara, a conversa era a mesma - prisões, demissões, perseguições e nada da abolição, os poderosos iam voltando, os reinóis continuavam nos principais cargos do governo, muita gente descontente com as brigas entre os cabanos. Sinhá ouvia atenta e preocupada.
A invasão da casa do vice-cônsul francês, ato ilegal, cometido como se houvesse ali uma reunião de conspiradores, pôs outra vez todos no convés do brigue Conquista. Dali viram o bombardeio que os navios em manobra despejaram sobre o casario.
As notícias vindas da terra confirmavam os desentendimentos e brigas entre os cabanos - o presidente, deposto e assassinado, os revoltosos aclamando o comandante das armas como novo governante. O assunto no brigue era a interpelação diplomática que o cônsul faria ao governo assim que chegassem os navios franceses.
O esclarecimento da afronta e o pedido formal de desculpas pelo novo presidente foi aceito. Permitiu a volta à normalidade e o desembarque de todo o corpo diplomático e suas famílias.
A vida de Murtinho e Rosina mudou pouco, continuavam risonhos por qualquer coisa, imitando o cotidiano do navio, como fossem marinheiros, oficiais graduados dando ordens ou as outras pessoas importantes que viram, mas uma pequena mudança tiveram, com a sinhá preocupando-se cada vez mais com os acontecimentos, deixando de sair e não os deixando também. Apenas Murtinho ia à casa importadora buscar encomendas e mantimentos, na volta, contava o que ouvia na rua – iam entregar o governo, ninguém queria deixar as armas, não confiavam nos portugueses, muitas desavenças que só Angelim dava jeito e nada da abolição e da igualdade prometida.
Na cozinha, Rosina ria do jeito de ele imitar o novo presidente nomeado, que viram na missa quando ouviram sinhô contar na sala, do ataque na vila da Vigia e das conseqüências – prisões e perseguições aos cabanos, muita gente fugindo para o interior e para os navios surtos no porto.
A luta não demorou, o ataque foi violento com muitas mortes, saques, algazarras e vinganças. A perseguição aos estrangeiros foi intensa. O descontrole com a morte do ex-presidente Vinagre foi grande, e a transferência do governo para a ilha de Tatuoca provocou muita confusão, quem não fugiu logo nos primeiros dias para os navios, ficou à mercê de violências, que nem o presidente cabano aclamado conseguia controlar.
Uns poucos, na boa vontade do Presidente Angelim, cuja família era mantida reclusa em Tatuoca, conseguiram ainda fugir com a ajuda do bispado, em meio a euforia desmedida dos revoltosos.
Os escravos levaram, um pouco de cada vez, os pertences necessários até o bispado, passavam despercebidos pelas ruas. No começo da noite, ajudaram os donos a vestir as batinas que o bispo mandou e os acompanharam com archotes de pouco lume até o local do embarque.
Murtinho e Rosina quando se viram sozinhos na casa, entre risos e mesuras tomaram conta como se fossem os senhores, roupas, objetos e adornos serviam para suas imitações e brincadeiras. Vestiam-se como os senhores e ficavam pelas frestas das janelas olhando a rua, tentando descobrir as casas da vizinhança que tinham sido abandonadas. Ficaram obcecados pela possibilidade de entrar na casa alheia e ver o que tinha lá. E assim faziam. Murtinho saía para descobrir qual a casa que estava abandonada, e lá entravam, sorrateiros e silenciosos, para suas brincadeira de imitar os poderosos.
MQ
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domingo, 30 de maio de 2010
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