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Cego Bocovó
Preadores avençados com Antônio Tejuco desciam o Acaraxiteua em duas canoas, bordejando o mato fechado nas margens, fortemente armados e atentos; traziam oito peças que não sabiam identificar a tribo a que pertenciam. João Bocovó fizera o assento e comandava a descida, observando cada detalhe da margem, muito receio revelava e, mais que ele, os remeiros assustando com qualquer barulho de bicho.
Nos muitos anos não tinha visto nada parecido, nunca foi tão fácil dominá-los, nunca peou nenhum com tanta facilidade e estranhou não ter mulher junto, fogo acesso e mais ainda, serem só adultos. Quanto mais pensava, mais desconfiava de alguma coisa errada. O silêncio foi tomando conta, ficando quase que só o barulho dos remos ferindo a água. O Acaraxiteua abria remansos em cada curva e a mata parecia o cobrir do sol. Um denso no ar envolvia o lugar. João Bocovó olhava vez em quando o semblante dos índios peados, confirmava sujeição, olhava as margens, confirmava silêncios. Sinalizou com a mão ao proeiro, dando rumo de meio do rio e, aos outros, alerta de luta.
- Nõm... nõm... nõm...
Os gritos ressoaram e o tapanhuno se pôs nas vistas, mal se equilibrando no casco com duas varas cravadas no fundo dum remanso, lhe sustentando equilíbrio. Parecia saído do fundo das águas; a pintura de urucu sobre a pele negra lhe dava aparência sobrenatural, assustando a tropa de resgate. Os índios peados, no primeiro grito, manearam a canoa desequilibrando a mira, enquanto das margens, o ataque veio por entre o folhame em riscos de morte. Vivos somente os remeiros e o chefe dos preadores, flechado de raspão no rosto.
No Abaribó, abundância e muita festa, resultado da armadilha. Os remeiros se misturaram ao cotidiano dos aldeados, alguns encontrando até parentes ali.
João Bocovó, reconhecido e temido por muitos, foi trancado e vigiado dia e noite, o ferimento no rosto formou uma pústula que contaminou o olho direito; as dores insuportáveis, a febre alta o faziam gritar de dor e delirar. Aos gritos dava ordens, lembrava escaramuças e devassidão, as índias usadas, seus filhos, comida peada que se carregava sozinha; contava seus teres e haveres como se desse conta a alguém; chamava os padres nome a nome, enumerando pecados, falava com lascívia das índias e se punha nu, copulando-as na lembrança. Enlouquecia. Com isso, retardava o dia de ser comido e diminuía a vigilância.
A fuga se deu num começo de madrugada. Cego de um olho, enxergou a oportunidade e se embrenhou no escuro da noite, debaixo de chuva grossa e o farfalho da mata nos ouvidos. Vagou pelos igapós do sertão abaribó com o mormaço lhe queimando abafado durante o dia e o frio que a chuva punha nas noites lhe gelando os ossos. Encontrou o Acaraxiteua sem muita dificuldade, mas na margem oposta a que tinham seguido quando aprisionado; o olho purgava em mal cheiro, o corpo lanhado e enfraquecido obedeceu até puxar a galhada da arvore pra dentro do rio.
Acordou com um barulho compassado de madeira batendo em madeira, estava cego e preso nos galhos que a maré vazante movimentava de encontro com o casco do navio fundeado no porto da Cidade do Pará.
Nele os jesuítas embarcavam expulsos da província.
MQ
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sábado, 24 de abril de 2010
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