sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O POVO DO BELO MONTE IV - Brás Teodoro

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Entendia estar pintando o povo do Belo Monte mas não entendia como tudo estava se passando. Nunca havia trabalhado com aquele material ou com relevo em tela. Em mais de cinqüenta anos de profissão conhecia todos os processos que o mando da intuição punha nas minhas criações, mas aquilo era totalmente diferente.


Dizer que não temia a loucura, não posso. Sempre acreditei que é a lucidez que desenvolve minha intuição e coloca tanta emoção dentro de mim.. isso admitia ser minha loucura. A temática do meu trabalho foi clara desde o início, nunca saí dela por isso sabia agradar e me sabia um artista diferente, vivi disso.

Por mais que quisesse pensar não conseguia. Um encantamento qualquer e invisível tomava minha vontade e repetia a ação de ligar a vitrola, colocar o mesmo disco, preparar o material e entrar naquele mundo de fisionomia e cor de terra. Perdia a noção do tempo e não sabia mais sobre seu processo: meses, anos, dias, horas ou momentos... Tanto fazia. Dele, as únicas referências que tive foram as visitas de Anabel.

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Na segunda vez que ela veio eu estava terminando As Beatas. Senti sua presença ao meu lado; parecia mais velha e foi quando mais demorou. Olhou com carinho os quadros que estavam quase prontos pela sala - um por um – até se deter no Beato.


– Segui o Beato desde que o conheci... era chamado Antônio dos Mares. Tu sabes... construiu igrejas e cemitérios pelo sertão, a fé e a esperança guiaram seus passos. Tu sabes... a fé sertaneja contra a incúria, o descaso... tens fé? Acreditas em Deus, meu filho? Acreditas mais nos homens, né?

Era como se ouvisse meus pensamentos. Foi como consegui descobrir a forma de comunicação que estávamos tendo desde o primeiro encontro. Então, ela me sabia ateu, descrente? Então, sabia que só acredito no deus e no demônio que estão nos homens.


- É, sei... sei ...

Ouvi a resposta e a vi encantada com minha estante, correndo os olhos por cada um dos livros, parecia planar pelas notas da música. O semblante sofrido cedia algum contentamento como se ela estivesse conversando com a música.

– Pinta as Beatas cantando loas, como em Bom Jesus, pediu.

Meu pensamento vagou como fosse um seguidor, pela imensidão, em todos os lugares da peregrinação, e senti a desesperança sendo tomada por aquele homem franzino que apareceu de repente junto a Ana das Letras. Agora olhavam os livros e se embeveciam com a música, pediam loas.

Um sofrimento estampado num vasto qualquer; um nada; secas medonhas; o demônio de homens medonhos pervagando a caatinga. A fé sertaneja espalhou-se junto, caminhando junto; sendo construída sem medo, dentro dos homens, por seres desconformados dos limites dum estado, omisso e sem feitio.

Meu pensamento viu o Beato juntando o sofrimento com a esperança, criando o rosto da fé sertaneja, viu semear um legado de feição a feição. As imagens se formavam com muita velocidade e me colocavam num lugar e noutro; num tempo e noutro, fora do meu.

Aclarava, como se fosse eu, a memória. E recitasse prédicas e visse santos, gritasse hinos e tivesse fé. Como se ensinasse compartir sem as alfaias, vestindo a sina de só ser irmão. Com ele ia junto zelando o sertão, semeando o cuidado pela alma do corpo, pelo corpo da alma. A deudar-se inteiro em rica pobreza; pastorava sem medo, era a fé sertaneja pervagando a caatinga, pregando o trabalho na cartilha do amor.

Novenário nas mãos, ensinando o pão e a ser uns pelos outros como convém ao cristão. Arrogava a esperança na gente do sertão e fazia da crença a semente, calando poderosos de batina ou não.

Espalhando, andávamos caminhos plantando o exemplo. Minha memória, no Penitente ensinando tanta gente a dar-se as mãos; sementes vingavam sob o fogo e a incompreensão quando muitos tentavam destruir qualquer fé dardejando o poder sem o olhar cristão.

Mas a memória era em vão; dela também saíam misérias e sofrimentos que grudavam em nossos pés, como pó, como se o que eu pensasse fosse inútil; até a seca medonha rondando ano a ano não matava nem secava nossos pés plantados em todos os cantos onde houvesse o sertão.

A fome tomou-me as mãos e ziguezagueou por lonjuras e direções, colhendo inanição e podre de corpos ainda vivos, servidões e desespero. Esperava em volta formar a conjugação da seca com a miséria e o sol embraseado crestando e limpando até os cardeiros da terra agreste. Rondava tudo que estava vivo, uma luxúria podre esperando entrar pelos seres e eivar a caatinga toda.

A seca remoía as pedras escalavrando o chão e, numa volúpia desembestada, me tomava inerte, crestando meu corpo. E eram vãos os pensamentos, tudo só servia mesmo pra morrer. O resmungo do seco estalando galhos, murchando as flores do xiquexique desde que rebentavam, desordenando peçonhas e animais miúdos. Liturgia esturricada calando a vida.

A pobreza e sua avidez esmagando vontades, pondo fraqueza no fraco, melindrando sintomas e urrando um canto de desesperança dentro da minha cabeça e entre os franzinos jeitos de sobreviver. A miséria, um ser tão presente, tangendo vontades exaustas e esfaimadas.

A mão dos homens segurando as minhas, nenhuma fé; ditames vomitados no meu corpo seco e na pele do sertão. Macambiras, imbuzeiros e silvestres exaustos propondo nem nascer e os homens segurando suas ganâncias e ardis.
No meio de tudo isso uma cruz tosca de madeira, um estandarte e o povo com o Beato Penitente passavam cantando benditos por entre as feras, ensinando os bons caminhos e a austeridade de ser diante do medonho do mundo.

Senti que sorriam quando me viram olhar para meus pés empoeirados e inchados. Da cintura para baixo, o cansaço entrou no meu corpo como uma lâmina cortando. Tive que sentar para não cair. Um jeito de poeira me tomou todos os sentidos e não senti mais nada. Apenas da espátula na minha mão tinha certeza. Pensei desfalecer. Não sabia do tempo.

***

Eles estavam no mesmo lugar quando acordei, continuavam olhando a estante, agora sorriam em frente à escultura em barro de São Francisco.

- Ele foi casado com uma santeira, ajudava com o barro, ajudava queimar os santos... foi de lá que saiu pelo sertão praticando a fé sertaneja...

E desapareceram no último compasso da música. Com eles fui junto ouvindo os cantos que os muitos carregando pedras cantavam construindo a capela de Chorrochó. Depois andamos o sertão cuidando cemitérios, ajudando no rendimento das igrejas e reparando as velhas. Era a multidão colocada na lonjura das vistas; seguíamos em orações caminhando por um nada que era de todos. A seca punha um cinzento até no céu... pareciam ajudar com a fé e a obstinação até a caatinga suportar tanta ausência.

Por onde passávamos só havia carcaças de animais, casebres abandonados e gente entorpecida pela miséria, mas com uma chama de esperança luzindo quando viam Antônio Penitente passar com seu bastão apoiando o corpo, seu menor tamanho, sustendo os sacrifícios e a sina.

No meio deles senti o sofrimento moer meu corpo, a secura gritar no estalar da caatinga e o ouvi pregar o possível; construir a caridade, o peditório de esmolas misturado ao bem fazer. Naqueles caminhos reformamos muitas igrejas construímos cemitérios, açudes e encontramos descaso e incompreensão de padres e poderosos.

A seca intumescia e devorava as vontades. Via em volta nos rostos e no minguar do corpo de cada um. Mas um caminho se punha em obrigação: seguir o Beato em sua fé.

Andei por todos os lugares que eles passaram, por isso o cansaço cada dia aumentava no meu corpo. No Bom Jesus, os fogos na sagração da igreja ficaram nos meus olhos. A pregação do Beato Peregrino colocava as palavras em nossos ouvidos e ressoavam nas capuabas dos caminhos de Cambaio, Caipã, Canabrava, Rosário, Massacará, Jeremoabo, Cocorobó, Poço de Cima, Sauí e Angico.

A tantos lugares chegávamos... socorristas trazendo alento, repartindo algum de comer, esperança e a riqueza pobre tirada do trabalho e da caridade em Canabrava, Cocorobó, Calumbi, Cambaio e Caipã, Urucu, Rosário, Monte Santo, Uauá, Cumbe e pelos afluentes do Vaza-barris; Umburanas, do Mota, da Providência e Rio Sargento. Gente de cada lugar, vinha junto... africanos e seus descendentes alforriados... os últimos dos kaimbés e kiriris, juntando hábitos e costumes, acreditando no trabalho, na fé e nas promessas do Beato de construir vinte e cinco igrejas fora das terras do Ceará. Enxergava tantos desiguais juntos vagando pelas dificuldades e pelo agreste.



MQ

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2 comentários:

  1. "...Canabrava, Cocorobó, Calumbi, Cambaio e Caipã, Urucu, Rosário, Monte Santo, Uauá, Cumbe e pelos afluentes do Vaza-barris...", me impressiono com os nomes desses lugares e rios. Cada um carrega um tesouro de mais histórias e personagens.
    Parece que a saga de Antônio Conselheiro e do povo do Belo Monte é um daqueles desenhos que mudam de forma e de cores à medida que a gente muda o ponto de vista e vai se aprofundando. Mergulho na obra ao encontro de um sem fim de outras obras.

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  2. Márcia,

    Você tem razão... foi uma pena um grande escritor (Euclides da Cunha) ter escrito o livro que acabou virando a verdade sobre Canudos (Belo Monte) e o Conselheiro por mais de cinquenta anos. Uma pena que, dos intelectuais da época, somente Machado de Assis ter questionado o que ele escrevia (estou publicando esses questionamentos esporadicamente no Abaribó).
    A história foi bem outra, sempre é bem outra, nessa nossa patriazinha. Ali certamente foram esmagadas muitas opções de como se fazer uma grande nação.
    O professor José Calazans foi quem mais desvendou o assunto, pesquisador incansável produziu farto material, sobre todos os aspectos, do que houve e como aconteceu realmente.

    Te abraço.

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