sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O POVO DO BELO MONTE III - Brás Teodoro

.
Ana das Letras

***

- Sou Ana das Letras...
Ouvi claramente.
- No tempo que estás... ele foi Antônio.
Ouvi de novo.
Pensei no quadro que secava me falando, esperava isso mas ela estava era parada, próxima à porta como se pedisse licença para acabar de entrar; uma mulher magra, de gestos simples e voz rouca. Entrou em silêncio, tomou o quadro nas mãos e sorriu dizendo.
- É ele quando foi Antônio! Tu sabes dele? Parecia com meu avô.
E começou a falar do avô.
- Vivia do mar! Eu era pequena... ele perlustrava a calma do mar, com o olhar de velho pescador; penetrava naquela imensidão, identificando a feição do vento e o movimento das marés. As mãos grossas lidando com a rede e a sabedoria remendando as palavras mal conhecidas, quase sussurradas no grave da voz... apontando o cardume do fulano no qual iam sair pra pescar. Do fulano porque ele primeiro o viu, no mesmo ser, de todos que nele pescariam o sustento. Ali qualquer cardume era do mar, do mundo, de Deus e dum pescador. Foi a lição que levei para a vida toda.
E ficou calada ao lado da mesa em que comecei a trabalhar; às vezes sorria dissipando um pouco a tristeza que me freqüentava inexplicavelmente. Sua atenção não era para a espátula que bulia o barro de papel espalhado pela tela: o que olhava era a estante repleta de livros a sua frente.
A sensação era igual a que senti ao olhar o relógio, de total desentendimento. Não conseguia falar uma palavra e, ao mesmo tempo que delineava rostos disformes na tela, via aquela mulher curiosa percorrer os títulos dos livros com muita atenção percebendo a música com um ligeiro balançar de cabeça.
Correu os dedos pela lombada e se deteve por instantes em alguns. Olhou demoradamente os de Guimarães Rosa, agrupados no segundo vão, prestando muita atenção. Quando começou o segundo movimento da Nona Bachianinha fez um gesto apontando a música no ar até dizer com um sorriso:
- Tu conhece eles por nós!
E virou a cabeça olhando o andamento do quadro em cima da mesa.
- A Guarda Católica... vou trazer nosso povo aqui! Eu voltarei...
Disse ampliando o sorriso e se virando em direção à porta.
Não conseguia parar de trabalhar o quadro. A Guarda Católica me tirava dos instantes sem que percebesse; não conseguia pensar em nada, não sentia vontade de fumar, comer ou qualquer coisa normal de se fazer. Parecia de novo não estar no meu corpo. Vi-me em lágrimas e os via em lágrimas; uma tristeza procurava a cor nas tintas e uma urgência comandava os movimentos de fazer mais papel-barro, espalhando em todo tamanho de tela que havia disponível na minha frente. Ali renasceram naqueles dias muitos rostos do Povo do Belo Monte. A angústia me tomava, e a agonia trabalhava em minhas mãos, nenhum sentido estava envolvido com outra coisa. Numa hora, o cansaço bateu, e tudo que estava quase pronto, secando para receber acabamento e os retoques finais saltou para dentro da minha alma.
O que sentia na hora não sei descrever; me percebia exaurido e sem cansaço, numa sensação só. De novo bebi como se o álcool fosse necessidade do corpo; me senti um alcoólatra; lembrei os meus tempos de boêmia e fiquei horas olhando as figuras num misto de perplexidade, contentamento, dor e tristeza, mas sem derramar lágrima alguma.

***

No telefone era Anabel de quem nem lembrava o nome, querendo voltar para escolher o quadro e trazer com ela um amigo do interior, um poeta que queria muito me conhecer. Na conversa mencionou que estivera na minha casa três dias antes. Voltei à racionalidade nesse momento e consegui ver as horas. Descobri que não me alimentava, não dormia e nem fazia nenhuma higiene pessoal. Olhei em volta a bagunça que estava a casa; lembrei que só no outro dia a diarista viria cuidar da limpeza. Dei uma arrumada superficial na sala, tirei as marcas de tinta do corpo, tomei um banho demorado e fiquei esperando.
Abri a porta com a fisionomia cansada e aparentando muita solidão. A casa estava silenciosa como se fosse um lugar de meditação; o cheiro de tinta carregava o ambiente, mas atenuava o forte odor de papel com cola ainda secando em muitas telas espalhadas pela casa.
O entendimento sobre a compra do quadro foi breve, mas nossa conversa entrou noite adentro. Havia muita curiosidade sobre a temática que estava pintando. Eles acharam um pouco sombrio e triste, queriam saber mais.
Contei o que me pareceu que devia: o tema era recorrente em minha vida, fazia muitos anos; desde muito jovem que lia tudo o que encontrava sobre o assunto; chegava a pesquisar, publicar artigos em jornais e revistas... que achava uma história muito mal contada... omitindo, claro, todos os meus problemas com a ditadura, o transe pelo qual estava passando e que nem eu entendia. A conversa foi mudando para outros assuntos. Falamos de poesia e música. Ela deixou o jovem poeta e se despediu no meio da madrugada.
Bebemos até o amanhecer, ele tinha um talento quase impertinente para conversar e dizer da sua poesia, era como se estivesse sonhando. Adormeci sentado e só acordei na metade da manhã. Ele permanecia na sala ainda bebendo e lendo. Saímos para um bar que não me lembro... encontramos outro poeta seu amigo e os dois se puseram a escrever em guardanapos... decerto nos despedimos ou nos perdemos no fim da tarde. Voltei pra casa acompanhado de um cão que me seguiu pelas ruas, surgido não sei de onde, que me acompanhava e me ignorava ao mesmo tempo. Sumia das vistas e retornava no outro quarteirão, mais parecendo uma visagem. Quando eu o olhava, virava a cara pro outro lado como se não fosse com ele e continuava desaparecendo e aparecendo.


MQ
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário