quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O POVO DO BELO MONTE II - Brás Teodoro


Antonio

Brás Teodoro I – Seu relato sobre os últimos dias.


Pensava na rotina da minha angústia, de como gostava daquele fazer repentino, da intuição comandando tudo, de não ter nenhum conhecimento formal sobre nada. Aquilo me colocava nu diante da manifestação: minha arte sem polimento nenhum, consentida. Simplicidade gritando emoção – me disseram uma vez: - És um desesperado, por isso és são!


Eram meus pensamentos enquanto preparava o papel machê. Dali queria a possibilidade de esculpir, como já fizera no barro, sem que minhas mãos engelhassem. Preparava o material quando senti o ar ficar abafado como se estivesse sem umidade. Parecia, como se isso fosse possível, que as pequenas partículas não contivessem água e sim uma tristeza vinda de longe.


Contracenando com o momento, ouvia as Bachianas de Villa Lobos que da vitrola pareciam gritar esplendor e melancolia ao mesmo tempo. O ambiente todo conspirou com aquela sensação. Da rua não ouvi mais nenhum barulho. Tudo em volta estava parado. Um silêncio que só deixava a música espargindo, afiando o ar. Meu corpo rebelou os gestos e jogou o papel machê na tela branca que nem percebi apanhar no canto da sala. O material preparado pareceu ter vida própria e se arrumou na tela esparramando sinais; não me senti manuseando a espátula.
O papel machê tornava-se barro diante dos meus olhos e se punha em criação erguendo uma fisionomia familiar e sofrida. A tristeza do ar entrou pelos pulmões e explodiu nos movimentos atormentados das minhas mãos; os cigarros que acendia se queimavam no cinzeiro sem que me lembrasse de tragá-los; o movimento dos meus pensamentos queria não entender a hora, mas entendia de alguma maneira aquele rosto que ali nascia ou renascia e que tinha a arquitetura da solidão. De seus olhos brotavam lágrimas que a espátula espremia no barro de papel. A boca balbuciou.


– Sou Antônio...


E mais nada.


***


O bater na porta me tirou daquele encanto, se assim se pode dizer. Foi desta forma que a conheci, olhando minha última produção, uma série de cenas sertanejas. Seu acompanhante via tudo com o desinteresse de quem só faz companhia, mas o olhar dela percebia vida e se emocionava. Senti vontade de chorar e de que ela chorasse comigo. Senti vontade de que aquele homem se fosse e ela ficasse; de colocar de novo o disco e aumentar o volume e sentar ao lado daquela desconhecida para ouvir a Quarta Bachiana e chorar silenciosamente para sempre.


Nada disso aconteceu. O casal elogiou meus quadros, perguntou por uma exposição e manifestou intenção de comprar um dos trabalhos para a parede dum quarto. Voltaria noutra oportunidade e se foi como tantos outros.


Desandei a chorar mal saíram. Desandei a beber e a chorar sozinho. Sentia-me distante, numa espécie de espanto, não estava só. A música entristecia ainda mais o momento. Por quê? Não sabia. Nada naquele dia era racional ou explicável. O simples gesto de acender o cigarro era diferente, parecia eu mesmo e próprio, me vendo fazer as coisas e não que as estivesse fazendo. Via-me chorando e sentia o rosto esculpido no papel secando na mesa vestindo o meu; sentia os olhos daquela mulher bonita sendo os meus e chorando com os meus; sentia a presença de Villa Lobos regendo minha tristeza indefinida. Tudo era vago; o momento desacelerava em volta, vagarosamente. Sentia as lágrimas esfriarem escorrendo pela pele e um aperto me crispando o peito.


Um cansaço mais que físico, parecendo uma ressaca, o excesso de sensações deixando torpor e junto um conforto foi tomando conta, tomando conta... até que desabei com o nascer do dia.


Quando acordei, pensei ter sonhado tudo aquilo até ver em cima da mesa o quadro quase pronto, mas ainda úmido, talvez das lágrimas, pensei, descartando o sonho e me lembrando do rosto da mulher que queria um quadro para seu quarto junto daquele homem elegante demais, formal demais.


Não sabia o quanto tinha dormido. A vitrola continuava repetindo as Bachianas e era dia claro. Na cozinha, enquanto preparava o café, também lidava com mais material; queria trabalhar como no dia anterior, penetrar fundo naquela situação irreal e parecendo prevista, esperada ou quem sabe até desesperada.


Lembrava; Antônio... enquanto sentia as mesmas sensações do dia anterior. Tomei café puro e acendi o primeiro cigarro, olhando pela janela a rua calma. Decerto seria um domingo.. não sabia que dia era, que horas eram. O tempo saiu de meu entendimento: desaprendi a ler as horas e constatei isso ao ficar em frente ao relógio, olhando o objeto. Alguma coisa me induzia a não tomar conhecimento de nada, não sentia o gosto do café na boca, menos ainda do cigarro. Sentia-me irreal, até tocar a espátula e começar a trabalhar.


Olhei pela sala e vi as duas garrafas vazias que havia tomado. Imaginei a ressaca com que deveria estar e não estava; sentia-me bem e novamente dentro de um tempo impreciso; dentro de uma tristeza imprecisa e densa. A música parecia rasgar o ar em tiras de melancolia e atingir meu corpo com uma dor pungente que doía e libertava, como se só uma coisa fosse.
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MQ

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