terça-feira, 30 de agosto de 2011

SERTÃO DO SÃO MARCOS - Madalena

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O rosário corria pela mão fina de Madalena, era o último dia da novena e ela não sabia o que fazer. Ele lhe dissera que viria naquele dia. Ela rezava para que nunca chegasse. Os dedos puxando cada conta do terço e o medo tomando conta, medo de sair da igreja e encontrá-lo na porta.


Por que concordara com aquilo, não era do seu querer mas mesmo assim dera a palavra sem nem conhecê-lo.


Antes de se benzer e sair, pediu a Nossa Senhora da Conceição que mandasse o seu anjo de guarda para que a protegesse e desceu as escadas puxando o véu da cabeça para os ombros. Foi alívio que sentiu até a porta da casa quando viu o cavalo preto amarrado no poste.


O corpo tremeu, era ele sentado na varanda, muito bem vestido, todo de preto, chapéu de abas e botas de cano alto. O bigode fino, e as sobrancelhas arqueadas davam a aparência de que ao sorrir seu rosto se enchia de sombras.


Estava lá, sentado junto à família, calado, esperando. Calado era o jeito dele, assim ficava.


Dali em diante, dormia na pensão e mal o dia amanhecia estava ele de volta. Ficava o dia inteiro ali, entre sentado na varanda enrolando o cigarro ou em pé, encostado no batente da porta. Palavras poucas, vez ou outra, na cozinha, um cafezinho.


Acompanhava Madalena até a porta da igreja todos os dias e ficava esperando a missa acabar na venda em frente. No caminho de volta o silêncio era o mesmo. O medo dela era grande e o arrependimento também.


Às vezes chegava a se surpreender em maus pensamentos, uma morte qualquer... picada de cobra, um tombo do cavalo; talvez, que as sombras do rosto dele o engolissem ou que o preto de suas roupas o levasse para o quinto dos infernos. Quem sabe não engasgasse com alguma palavra, já que falava tão pouco.


O dia ia chegando, ele esperando e ela se preparando. A Tia ajudava no mais, a amiga Das Dores achava ele bonito, fino. Das Dores dizia, sem graça e sem inveja, que ela ia acabar gostando.


Seria possível um dia gostar dele? Do lugar onde iria morar? Do silêncio daquele homem sombrio?


Com o passar dos dias, foi se acostumando com seu destino. Encontrava até alguma alegria em arrumar suas coisas, terminar seus bordados em sua presença calada. Começou a reparar melhor em suas feições, no jeito de lidar com o cigarro, com o cavalo. Percebia no particular de seus gestos certo carinho. Era na véspera, até sorriu.


No dia, frente ao altar, reparou ele todo. Cada passo que dava pensava no tanto que havia se avezado com ele. A amiga Das Dores tinha razão, distinguia a beleza dele naquela hora da manhã, no reflexo dos vitrais em seu semblante, ali esperando no altar. O sombrio de seu rosto ficou para trás, naquela hora parecia um anjo. Quando ele estendeu a mão para recebê-la no altar, Madalena sentiu aquele calor percorrer seu corpo e no olhar dele uma promessa de amor, em silêncio.


Na despedida, o choro foi normal e nas léguas passando, aquela mistura, a lembrança do que sentiria falta com o que imaginava ser sua vida, dali agora.


Chegaram na hora do dia de mais silêncio, ao avistar a casa toda caiada, varanda em volta, bica d’água com monjolo na porta da cozinha e, ao lado, a horta verdejando. Lembrou de Das Dores, falando que ela ia acabar gostando.


Quando viu na curva do rio o mato virgem com os pés de ipê amarelo, todos floridos, entendeu o jeito calado do marido. Era tanta beleza ali, os buritis formando, lado a lado, o caminho bem cuidado, aquele dia claro e luminoso como se enfeitado para ela.


Nas poucas palavras dele mostrou tudo e ela sentiu como se fizesse parte dali. Nas primeiras manhãs faltou apenas ir à missa, depois nem se lembrou mais.


Foi se acostumando com o jeito dele, nas intimidades, um fogo só, no gostar de andar sempre de preto, no modo de lidar com os agregados, sempre com poucas palavras.


Ela nunca viu nada de estranho naquele lugar, apenas o silêncio. Era raro um canto de passarinho, um mugido no curral, até a chuva ali caía fininho, farfalhando pouco nas folhas; trovejo só se ouvia longe.


Não estranhou nem mesmo quando, ao tirar as botas do marido, descobriu o aleijão em seus pés repartidos em dois dedos, como pés de cabra.








Leia a obra completa aqui: http://sertaodosaomarcos.blogspot.com/
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