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Não havia ninguém no mundo que se parecia mais com uma vela do que Otacílio. Pudera, desde menino freqüentava aquela sacristia.
Tinha sido coroinha quando pequeno e, por mais de sessenta anos, era sacristão. Já havia enterrado dois padres, um monsenhor, e um cônego.
Magro, seu aspecto era o de uma vela; conversar com ele de perto não dava, não que tivesse mal hálito, era o cheiro de vela. Já quase cego, só enxergava direito firmando as vistas. Mas de uma devoção desmedida com a paróquia, a padroeira e o vigário. Cuidava dos paramentos, imagens e demais ornamentos com zelo, sabia onde cada um estava guardado na igreja.
Uma vez, a meninada escondeu o Cristo morto, ele passou apurado até descobri-lo escondido atrás do altar de Nossa Senhora Aparecida. Desse dia em diante, nas vésperas da Semana Santa, ele vigiava a sacristia dia e noite.
Com a velhice, mal enxergando e ouvindo, deixavam que ele fizesse apenas algumas tarefas mais leves. Entre elas, acender as velas. Era um ritual. Primeiro as do altar mor, depois, um a um, o de Santo Antônio, Nossa Senhora Aparecida, São Judas Tadeu, Nossa Senhora da Conceição e, por último, o castiçal que ficava em cima da mesa da sacristia, que o padre ao celebrar a missa levava para o altar.
Todos os dias, após acender as velas, meia hora de conversa com dona Cotinha, na sacristia, onde a vida alheia era revista em detalhes, principalmente a de Totonho Costa, fazendeiro, político, homem dos mais influentes da região.
Otacílio tinha muito medo dele, não ficava um segundo perto. Dizia para dona Cotinha, na sua fala mole, cheirando à vela:
- Seu Totonho gosto não, muito brabo, está sempre botando fogo pelas ventas.
Razões Otacílio tinha de sobra. O fazendeiro só andava com os capangas guarnecendo, era de uma ignorância sabida e já provada por todos. A qualquer lugar que fosse, primeiro os capangas na frente.
A Cobra Verde ficava na ponta da Rua de Cima. Casa de mulher, toda caiada de verde, os cômodos forrados de pano vermelho, até a cozinha. Extravagância de dona Preta, mantida por Totonho Costa, freguês mais importante, para quem ela sempre guardava uma novidade.
Na véspera, Dé Cristão, seu capanga, chegava pelos fundos para dar aviso. Dona Preta providenciava os preparos e, nesse dia, a casa não abria. Totonho chegava de tardinha, desmontava e seus capangas soltavam os cavalos no pasto, atrás da casa, e ninguém mais se aproximava do lugar.
Totonho Costa tinha taras que eram guardadas em segredo, a sete chaves. Parte na generosidade do dinheiro e parte no exemplo da Mudinha, que dona Preta fazia questão de mostrar para toda rapariga nova, dizendo que Totonho é quem cortara a língua dela.
Nesse dia foi igual. Duas talagadas de cachaça, já escolhida Diolinda, a cigana que, quando não tinha nenhuma novidade, era sempre a preferida. Diolinda conhecia os gostos. Na hora certa.
- Enfia a vela! Gritou Totonho.
Ela tirou a vela debaixo do travesseiro e enfiou. Foi quando o estremecer pareceu diferente das outras vezes, o corpo retesou e ela sentiu por dentro um enrijecer que não conhecia daquele jeito. A contração dos músculos quebrou a vela na sua mão, ficando um pedaço enfiado. O quietar-se do corpo era assim mesmo adormecendo, mas o esfriar não.
Só se ouviu o grito na madrugada, quando ela percebeu o frio da morte.
Foi uma correria, dona Preta não sabia o que fazer, chamou os capangas, eles também não.
Dé Cristão acordou o padre quando já amanhecia. Contou que o ataque se deu no caminho, quando o Coronel ia trocar de roupa, depois de se banhar no Lajeado. Demoraram a encontrar o corpo e resolveram trazer para a igreja, por ser mais perto. Além do mais, eles não conseguiam vestir as roupas no morto.
O vigário foi na conversa, ajudou a pôr o defunto em cima da mesa da sacristia. Por causa do membro enrijecido, o coronel foi colocado de bruços.
- Vamos banhar ele e cortar a parte de trás da roupa prá vestir. Mande avisar a família. Pediu.
E saíram da sacristia, deixando o corpo estendido de bruços na mesa.
Nisso entra Otacílio para acender a vela e acende o pavio que saía do ânus do morto.
Dona Cotinha, espantada, já dentro da sacristia.
- O que é isso, seu Otacílio? É seu Totonho Costa?
Quando o sacristão olhou para trás, assustado, e firmou as vistas, o toco de vela que arrolhava o ânus do morto já havia derretido e os gases do corpo em contato com a chama provocavam uma labareda de fogo.
O sacristão espantado. Dona Cotinha desmaiando.
- Divino Pai Eterno, pelas ventas eu já sabia, mas pelo rabo, ainda não. Cruz credo.
Leia a obra completa aqui: http://sertaodosaomarcos.blogspot.com/
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segunda-feira, 15 de agosto de 2011
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