segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Ninguém me Conhece: 36) A Amazônica Elegância de Enrico Di Miceli


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Fora uma ou outra premiação em festivais, a oportunidade em que me senti mais prestigiado como compositor foi quando viajei pra Macapá pra assistir ao show de lançamento do CD de Juliele (o nome do CD é o nome da cantora), cantora amapaense que gravou Com a Razão, uma parceria minha com Bárbara Rodrix. Detalhe: a passagem e a estada foram bancadas pela produção da moça (abro um parêntesis pra agradecer ao marido-produtor - ou seria produtor-marido? -, Carlos Lobato, grande figura!). Por conta disso, eu e Kana (e mais uma série de compositores responsáveis pelo repertório do disco, entre eles Rafael - e Rita - Alterio, Vicente Barreto, Carlos Henry, Celso Viáfora - também produtor musical do disco - etc.) passamos quase uma semana no mesmo hotel onde uma semana antes o então presidente Lula se hospedara. Além de provarmos uma infinidade de deliciosos peixes típicos da região, fizemos um inesquecível passeio de barco pelo Rio Amazonas, com direito a uísque, cerveja, música e visitas a alguns ribeirinhos em seu habitat. Ah, e o show foi ótimo, com a bela e afinada cantora Juliele acompanhada por uma superbanda. E ainda tive a alegria de presenciar a plateia cantando junto a letra de minha parceria com Barbarinha, que na época vinha sendo executada nas rádios locais.

Lá também visitamos o monumento Marco Zero do Equador, que sinaliza a passagem da Linha do Equador, que divide os dois hemisférios do globo. Há, inclusive, um estádio de futebol construído de forma a que a tal linha passa bem no centro dele, assim, quando num lado do campo é inverno, no outro é verão. Claro que a mudança de temperatura não se nota. Pra efeitos turísticos, a exemplo de Manaus, Macapá também tem sua zona franca, pra alegria das amantes de compras e sacoleiros em geral.

Nessa viagem, já no aeroporto fomos recepcionados por um grupo de pessoas que dançava e cantava o marabaixo (ritmo local) enquanto outros nos ofereciam uma bebida local, cujo nome esqueci. Lá, conheci muita gente boa (como o escritor, poeta, fotógrafo, blogueiro etc., Marcos Quinan) e me aproximei de pessoas que já conhecia, mas com quem não mantinha nenhum tipo de relação, como foi o caso de Vicente Barreto, de quem já era fã, mas com quem não tivera o prazer de prosear. Ali, à beira da piscina, vendo-o com seu usual charuto e ouvindo suas histórias, nasceu uma amizade que desaguaria numa bela parceria. Mas de Vicente falarei noutra ocasião, este texto trata de um moço que nos acolheu ali como se fôssemos de sua família, levou-nos pra cima e pra baixo e abriu-nos as portas de sua casa pra um senhor churrasco: Enrico Di Miceli, um engenheiro que faz canções. Ou seria um compositor que levanta edifícios? Não sei como são suas construções, mas sei que suas construções musicais são da mais fina engenharia.

O paraense Enrico (ele reveza seus dias entre sua cidade natal e Macapá) é daqueles a quem basta ver uma única vez pra considerar amigo de infância. E ele é um perfeito exemplo do que costumo dizer: as melhores parcerias são as nascidas da amizade. Vejam vocês que saí de lá arrebatado pela simpatia (e pela amazônica elegância) do moço. Tanto que, já em São Paulo, mesmo sem conhecer sua obra musical, enviei-lhe por e-mail uma letra. A conexão por aquelas largas bandas não sabe o que são bandas largas, por isso sua resposta demorou mais do que se tivesse vindo via correio. Contudo, a demora valeu a pena, pois a resposta chegou com a confirmação de uma grata parceria. E, a partir daí, outras vieram.
Uma delas, aliás, uma de minhas preferidas, chegou a meu conhecimento de inusitada maneira: A fotógrafa e produtora musical Drika Bourquim, que vira e mexe está por lá, certa vez entrou em contato comigo e me deu um link de um vídeo que ela havia gravado e postado no youtube. E não é que era nosso intrépido Di Miceli mostrando-me em primeira-mão nossa Piauí? Essa parceria merece até ter sua história contada. Naquela época, algumas relevantes celebridades acharam por bem demonstrar publicamente seu "cansaço" e denominaram o movimento "cansei". Alguns empresários aderiram, entre eles um dono de famosa marca de TV. E justamente este senhor, ao dar espirituosa entrevista, fez uma ousada comparação entre São Paulo e o Estado do Piauí, chegando ao extremo de afirmar que se o nobre Estado nordestino sumisse do mapa ninguém iria dar por sua falta. Tocado por tão afirmativo movimento, num país de trabalhadores ociosos, resolvi homenageá-los com uma espécie de jingle, cujo nome, obviamente, não poderia ser outro: Piauí. O que eu não sabia era que a tal letra, tendo sido recusada por mais de um parceiro, acabaria caindo nas graças justamente de Enrico, que lhe fez uma bela canção, digna do movimento que a inspirou. Posto-a:

Embaixo da ponte tem gente/ Em cima da ponte tem carro/ Tem, dentro do carro, fumante/ Dentro do bueiro, cigarro/ No trem do subúrbio, lotado/ Um bando em pé… e cansado. Na frente do prédio tem shopping/ Atrás desse prédio, barraco/ Embaixo do shopping tem parking/ Tem obra que abre buraco/ E pobre que é soterrado/ Um bando que morre cansado./ Tem gente cansada por aí/ Querendo apagar o Piauí./ Tem gente que olha pro umbigo/ Cansada, de barriga cheia/ Não vê o olhar do mendigo/ Não vê o menor, quando cheira/ E aquele, no carro blindado/ Com vidro fumê… tá cansado./ Tem alvo pra bala perdida/ Doméstica fazendo bico/ Tem santa que entra pra vida/ Banqueiro ficando mais rico/ A sola de um pé sem calçado/ É que sabe o que é estar cansado./ Tem gente cansada por aí/ Querendo apagar o Piauí.

A mesma Drika supracitada produziu o Amapá em Cantos, série de shows com artistas que residem no Amapá, que ocorreu há algum tempo no Sesc Ipiranga. E entre os contemplados estava meu parceiro paraense. Claro que fui vê-lo e tive o prazer de constatar o que eu já supunha: o camarada, além de ser de uma elegância só no palco, possuir uma voz de timbre agradabilíssimo, ainda tem um repertório de responsa! Após o show ele me contou que estava em vias de finalmente gravar seu primeiro CD. Passaram os meses, a vida prosseguiu, até que muito tempo depois chegou a minhas mãos o excelente Amazônica Elegância, feito inteiramente em parceria com Joãozinho Gomes, uma espécie de Vinicius de Moraes amapaense, parceiro de muita gente boa, inclusive Zeca Baleiro. E Joãozinho mostra também no disco uma faceta menos conhecida sua: a de cantor, pois divide os vocais com Di Miceli. Claro que uma pontinha de ciúme talvez tenha atrapalhado a audição primeira, mas o tempo levou o ciúme, e o que ficou foi apenas a força desse trabalho da maior relevância, um dos CDs mais belos que ouvi nos últimos anos, daqueles que melhoram a cada nova audição. Quanto a mim e a nossa parceria, digo apenas que tudo tem seu tempo. E saber esperar é uma virtude... Pra quem não está cansado, por supuesto.
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Ouça um pouco da amazônica elegância de Di Miceli aqui: http://clubecaiubi.ning.com/profile/OXdoPoema

Por Léo Nogueira
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