domingo, 20 de fevereiro de 2011

Ninguém me Conhece: 34) Tavito, Cantando as Canções que a Gente Quer Ouvir

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Dorival Caymmi disse certa vez numa entrevista que seu maior sonho como compositor era conseguir criar uma canção que ficasse tão enraizada no inconsciente coletivo a ponto mesmo de se tornar desvinculada de seu autor. Algo como "batatinha quando nasce". Tavito conseguiu essa façanha. Não há quem não cante de cabo a rabo Rua Ramalhete, assim como quase todo mundo, em algum momento de sua vida, já se reconheceu nos versos de Casa no Campo. E pouquíssimas pessoas sabem quem são os criadores dessas pérolas. Tem quem ache até que Casa no Campo é de Elis Regina (pasmem!).

Lembro que certa noite cheguei a me emocionar bastante ao assistir, no Barnaldo Lucrécia, a uma apresentação de Élio Camalle, quando este começou a cantar Rua Ramalhete e notei que o bar inteiro cantava junto (alguns gritavam). E o mais curioso foi que a galerinha, com uma ou outra exceção, não chegava à casa dos 30. Ou seja, nem era nascida quando a canção estourava nas rádios. Por essas e outras reconheço em Tavito uma imensa gratidão deste pra com a grandeza de sua obra, sabedor que é do que seu parceiro em Casa no Campo, Zé Rodrix, costumava dizer: "O que importa são as canções". Assim, quando Tavito canta pela enésima vez "será que algum dia eles vêm aí cantar as canções que a gente quer ouvir?", o faz sempre com uma renovada emoção.

Tavito é, mais que um homem grande, um grande homem. Suas palavras são de uma doce sabedoria, sua humildade é exemplar, seu abraço é caloroso e sincero. E, como artista, é gigante! Melodista como poucos; excepcional violonista; arranjador inspirado (e requisitado); dono de uma voz que, se não é grande, é bela e original; e, de quebra, possui uma pena que o torna escriba dos mais deliciosamente palatáveis. Quem nunca leu um de seus maravilhosos textos não sabe o que perdeu. Saber que atualmente há poucos artistas (e cidadãos) com tais qualidades o torna ainda mais especial.

Quando eu era (mais) jovem, sonhava em ver de perto meus ídolos, poder trocar com eles algumas palavras e dizer de minha admiração. Com o tempo (e algumas frustrações) fui mudando, cheguei mesmo a evitar o contato direto com eles, pra continuar mantendo deles a bela imagem que trago em mim. Imaginem vocês então qual não foi minha surpresa ao ser apresentado a Tavito, receber o primeiro de seus muitos e fortes abraços e ainda por cima ouvir de sua boca: "Léo Nogueira, sou seu fã!". A coisa toda foi assim: Tavito, nessa época, morava no Rio. Daí que, quando fazia shows, costumava contar com o luxuoso auxílio da voz de Clarisse Grova a serviço de sua música. Ora, pois, Clarisse já era minha parceira e vez em quando lhe mostrava nossas crias. Assim, naquela noite, em que ela levou a mim e a Kana ao bar Panorama e apresentou-nos o homem do Começo, Meio e Fim, este já conhecia relevante parcela de meu trabalho. Ah, na mesma noite conhecemos algumas outras pessoas encantadoras, entre elas, a aniversariante da noite, a bela cantora Marianna Leporace.

De volta a São Paulo, arrisquei mandar-lhe uma letra. Quando, pouco tempo depois, recebi um e-mail seu com a gravação de nossa primeira filha, Ponto Facultativo, anexa, não tive como conter as lágrimas. Passado mais algum tempo, Zé Rodrix convenceu-o a mudar-se pra Sampa; então, tendo-o sempre perto, outras canções dessa parceria vieram ao mundo. No mais, era (é) um luxo tê-lo ali quase todas as semanas no palco (e nas mesas) do Caiubi. Acho que os novos (embora poluídos) ares daqui lhe fizeram bem, pois, depois de algumas décadas sem gravar nenhum disco pra chamar de seu, finalmente concebeu o exuberante Tudo. Pra minha tristeza, sem nenhuma das nossas. Não tem jeito, cada vez que um parceiro lança um novo disco sem ao menos uma parceria comigo, é a mesma dor. Foi assim com Camalle, Cavallieri, assim foi com Tavito. É uma atitude minha de reconhecida infantilidade, mas que até agora não consegui superar. Contudo, como o mundo não gira ao redor de meu umbigo, mesmo sem minha contribuição esses discos costumam ser bons. Com Tudo não foi diferente. Pensando nisso, resolvi terminar este relato com texto que escrevi, com as tintas da dor, acerca do supracitado disco, em 04/12/2009:

TUDO

A parte mais humana que trago em mim é a inveja. Ainda bem que é justamente ela quem me motiva a compor. Mas a inveja, acima da composição, é (obviamente) invejosa. Há alguns poucos anos, Fernando Cavallieri lançou seu CD Inefável, que já foi lin-da-men-te "execrado/exaltado" por mim. O CD é, realmente, inefável. Porém, na minha memória de invejoso, o que mais me chama a atenção até hoje, além das canções, que são um primor, é uma página na qual muitas fotos recortadas em estrelas aparecem... Todos estão lá... Menos eu. Cava, com a generosidade dos culpados, me presenteou o disco, que ouvi um milhão de vezes, como quem morre, fosse eu um Bandeira... Mas eu era só um Manuel...

Os anos se passaram, e esse nocaute, que pensei que jamais seria superado, o foi. O nocaute da vez chama-se, cruelmente, Tudo!!! TU-DO! E, se eu não fazia parte do inefável, novamente não estou dentro do tudo (onde tudo/nada cabe)... Soube que eu não estava dentro dele há um ano e meio, quando Tavito, generosamente, e sempre bem acompanhado por Celina, viajou a Campinas pra gravar sua participação no CD da Kana, levando a tiracolo a master do disco. A gravação foi ótima, mas não posso deixar de confessar que me senti um, digamos, NA-DA. Esse mais-que-homem, MONSTRO, que durante um milhão de anos não gravava disco (e que nesse meio tempo se tornara meu parceiro), finalmente dava a cara a tapa... E lá não estava eu... Nem em cara, nem em tapa (nem em coroa).

O tempo passou, e meu lado invejoso não me deixou apreciar esse acontecimento histórico... SIM! Eu disse: "ACONTECIMENTO HISTÓRICO!". O lançamento de um CD de um ícone de nossa música que havia tempos não enveredava por caminhos discográficos só pode ser considerado um "acontecimento histórico"!

Mas o fato é que eu, sentindo-me um parceiro da turma daqueles "outros rampeiros que se esborracharam no trajeto e mudaram de superfície, vítimas [...] de sua própria geração" (parece frase do Sonekka), acabei nunca tendo coragem de adquirir o disco, já malhado pelo inefáfel Inefável...

Mas o fato (olha a repetição, escritor!) é que aniversários são sempre momento de introspecção e avaliação; e não é que me vi numa loja de discos, às vésperas do meu, resolvendo justamente me dar de presente o malfadado/benfazejo TUDO?

A parte mais humana que trago em mim é a inveja (já havia dito no parágrafo inicial), mas a maior qualidade é o masoquismo. E não é que faz dias que não consigo ouvir nada além de Tudo? Ouço 1969 com a reverência e a admiração de quem nasceu em 1971; O Dia Em Que Nasceu Nosso Amor lembrando quando conheci Tavito no Panorama, apresentado pela Grova; Embora, como quem sabe que está ouvindo um novo clássico de nossa música; Uma Banda Em Sampa sabendo de cada esquina relatada na canção; O Primeiro Sinal, como se fosse a última chance; Gostosa, como quem está ouvindo falar de sua própria namorada; Tudo, vindo do inferno, com um olhar, se não furta-cor (esse Alexandre é freud!), ao menos cor-de-burro-quando-foge; Aquele Beijo (esse Azambuja é freud!) me lembrou de quando fui ao Titanic (o filme, claro) e roubei o primeiro (e definitivo) beijo à Kana; A Grande Sorte me fez pensar: será que eu sou a noite enquanto você é o dia?; e aí me passou todo Um Certo Filme, desde antes de Erasmo dizer à mãe que não era mais menino, passando por Humberto, que dizia à mãe que tinha uma guitarra elétrica e que durante muito tempo isso era tudo o que ele queria ter tido (mas hoje o mundo todo é uma ilha)...

Mas aí chegaram As Meninas... E, mais que lembrar as meninas que cada um de nós teve, veio novamente a inveja de não ter sido eu o único caiubista contemplado no disco...

Hoje Ainda É Dia de Rock é um capítulo à parte no disco, não só pela excelência da canção (rock baião?), mas pela simbologia de ser rodrigueana. Minas de Encanto é 100% Tavito, mais puro que um puro cubano. Dizer mais o quê? Dizer Rua Ramalhete? Esta é uma canção que a maioria de nós, invejosos, daria um não-sei-quê pra ter composto.

E cá estou eu, dias depois, embebido desse disco. Mais triste que quando ouvi o Inefável, e ao mesmo tempo tão feliz, tão feliz! Feliz por saber que ainda tem gente cantando as canções que a gente quer ouvir. E que eles estão tão próximos (embora tão distantes). Tavito, Guilherme Rondon, Affonso Moraes, Vicente Barreto, Bárbara Rodrix, Élio Camalle (só pra ficar nos mais recentes)... Só esses últimos que enumerei valeriam páginas e mais páginas dos jornais (vivêssesmos em um país sério preocupado com a arte relevante e revelante...).

Mas a única verdade é que sou um invejoso, e que minha cidade não tem mar, mas eu tenho o mar, sim! No cais de um porto (mineiro) onde fui me afogar!

E, como não sou jornalista, tenho a cara-de-pau de ir contra nossa querida LHC, quando diz: "Se beber, não escreva. E nem leia!" Hic!

Mãe e pai, hoje ainda é dia de Tavito!

***

Ouça algumas das canções de Tavito que a gente quer ouvir aqui:

Tavito também (graças a Deus) está no Caiubi: http://clubecaiubi.ning.com/profile/Tavito

Por Léo Nogueira
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