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Pedro Viriano e João Mutaba
Acordou muito cedo, precisando das primeiras horas do dia, a memória espalhava calor de luta no corpo, sentia-se alquebrado pela idade e solidão, mas não se deixava quedar. Da janela, olhava a curva do rio, os paus-d’arco floridos no meio da mata e se punha no passado, esperava João Mutaba como fazia todos os dias. Parte do que contava estava na lembrança dele também. Queria manuscrever tudo e iam se recordando pouco por pouco.
Quem escreverá nossa história senão os poderosos que sabem ler e escrever. Como saberão o quanto queriam a Amazônia européia e que só o sangue derramado evitou que ela não fosse brasileira.
Supria o pensamento, enquanto Mutaba preparava o papel e o tinteiro.
Remanesciam dos que não quiseram anistia, preferindo a vida nos ermos do Abaribó, lugar agora quase despovoado, escondido na mata fechada e na fama da valentia secular dos cafuzos que um dia dominaram aquelas terras.
Não se conheciam até o dia que se encontraram fugindo, cada um com sua família. Pedro Viriano, oficial calafate quebrado na virilha esquerda e com o rosto marcado de pólvora, remava subindo o Guamá com mulher e filha. Mutaba, negro, descendente de escravos vindos de Goiás com seus donos, nos primórdios de Cametá, nascido forro sem saber por quê; nadava tentando atravessar o rio com o filho nas costas. Dali nunca mais se separaram, subiram todas as águas procurando o Abaribó por mais de ano.
No sertão Abaribó quase deserto e desolado, a maioria dos que chegavam, vinham com esperança de encontrar, no mistério daquelas águas que o cortavam, ora afluentes, ora confluentes, ora defluentes, confundindo qualquer perseguição, o refúgio que a bravura pedia e se impunha sobre a anistia pedida, com honradez, por patriotas e concedida, como espórtula, com descaso por improficientes.
Pedro lia para Mutaba. De olhos úmidos, brilhando no reflexo do sol da manhã. Narrador e personagem ao mesmo tempo, empunhando com as mãos trêmulas a arma da palavra escrita, aprendida com a mãe e afiada pelos livros que o Cônego lhe recomendava ler. Sabia a última batalha travar, contava com os lampejos de Mutaba, com a tinta que ele extraía; devoção na tarefa de manter o tinteiro sempre cheio. Demorava olhando o chão de terra batida, macambúzio. Lembrava a mulher e a filha mortas pelo escorbuto em meio à falta de recursos.
O corpo ia cedendo aos anos e à pobreza do lugar. As palavras iam ficando no escasso papel, nas letras meio borrados em tecidos de algodão e nos ouvidos de Mutaba que pedia quase todo dia a Pedro Viriano ler o poema da liberdade, se sentia importante ouvindo tantas pa-lavras bonitas que ele não conhecia e nem entendia, mas sabia ter ajudado escrever; seu orgulho, lutar aquela luta, preparar a tinta desde a extração do anil-trepador até o preparo com gotas de óleo de andiroba, carvão e ervas sicativas, receita que a intuição cabocla, logrou. Daquela aguada escura saía também beleza na entonação da voz.
Pedro lia :
tudo por fazer
na terra nova
encontrada aqui
tudo por entender
do braço índio
nascido aqui
vida viva
de vencidos e vencedores
vivendo livre
sobejando aqui
encontro das culpas seculares
aprendidas de joelhos
e mãos postas em armas
com a vida viva nascida aqui
contrição e a rubra mordaça
desnudada nas batinas
entalhes lúbricos
resultados sem lavor
traço negro trazido à força
para empenho e labor
vida viva
mutilada da altivez
restada nos porões
pútridos do estanco
manumissão de libertos
juntos
calados e misturados
às conquistas que o deszelo
cobriu com hipocrisia
sobrepondo lenitivo à vida
do braço índio cativado aqui
do braço negro exilado aqui
do braço branco renascendo aqui
verdade mestiça de dores
esparramadas em subserviência
findando no descaso com a terra
que se fingiu descobrir
o gentio se misturando
mesmo curvado
quimeras prenunciando salvação
imitando de mão em mão
um deus
um rei
mas sonhos podem ter
as mãos quando ganham
os espertos com seus grilhões
mas sonhos podem ter
as mãos quando tocam
a verdade nos sonhos
de outras mãos e somam
a escolha da liberdade
de mão em mão
óbolos de fel que põem
solenemente acima
falsos e vazios
circunspectos sujigando
em leis que moem
e subtraem apenas
estugando o ódio
nas entranhas
da morte em cal
sangue e fezes
embriagados na loucura
dos boticários
punindo em vão
segregando o respeito
dor
adornada de dor
adonando todos
desencadeando vala comum
e rasa do Penacova
valimento dos restos
de menos valia
rompâncias e sujeição
assomados nas ruas
iniquidade torturando
calma e silêncios
no ecôo da concertina
no sibilo das balas
polução
na calma da noite
na soberba das alforrias
cordura com os atos
exéquias pequenas e tristes
nos arrabaldes do sonho
mourejados
só com a vida
cabedal que se doa
com zelo, sem datação
ressôo de bombardino
sibilo das ordens
entrando pelas gelosias
das janelas abandonadas
pelos senhores intolerantes
sobrecarga da ira
no gentio apartado
vagando erradio
pelos mocambos
deixando rastos
imperceptíveis
nos bivaques e caminhos
no negro amolegado
pela chibata
homiziado nas quilombolas
no branco tocado
pela liberdade sem laços
rompendo desígnio
detração pelos adros
e palácios como vômito
no linóleo impregnado
o esgar dos brasões
enrijecendo a verdade
pelas ruas e caminhos
espalhando a vontade
o gesto
lesto
esmiuçando os arredores
até o suburgo na beira do rio
onde folga homens
embaixo dum pau copado
deslindando seu relato
parte por parte
para entender melhor
o dédalo das leis promulgadas
postergando e emudecendo
o ventre tenro
onde a liberdade
queria nascer
João Mutaba não movia um músculo do corpo, ficava tempo olhando o longe. Pedro Viriano, cada dia que passava, terminava a leitura com a respiração mais cansada. Ensimesmado como o ouvinte, se perdia das palavras, ficavam horas trocando seus silêncios.
Enganava o tremor das mãos com a tarefa que se impunha, pedia a Mutaba tinta e a lembrança da chegada do mestiço Visgo Rei e sua gente, anistiados e depois fugidos do Corpo de Trabalhadores.
Nossa verdadeira derrota foi na calada das leis que perdoam e aprisionam a um só tempo: os braços e os sonhos, desespero dos precitos, trabalho livre em grilhões, dispostos. Servidão paga com moedas esvaecendo direitos, cortando fio por fio a teia que a liberdade ousava tecer.
Escrevia traduzindo a voz cansada. Escrevia...
Pedro Viriano foi encontrado por Mutaba sentado no banco, na mesa, em frente à janela onde costumava ficar olhando as águas, a cabeça tombada sobre o ombro direito como se as visse. Nas mãos, segurava o maço com seus escritos, os braços esticados pareciam querer entregá-los a alguém.
João Mutaba sentou no chão batido da soleira, olhou os caminhos do Abaribó entrando pela mata, findando nos barrancos, ligando as cabanas; um abandono, somente velhos esquecidos e esquecendo, pensava em silêncio, ouvindo a voz do morto recitando:
... postergando e emudecendo
o ventre tenro
onde a liberdade
queria nascer
MQ
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quarta-feira, 16 de junho de 2010
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