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Carolina hum, hum, hum...
Carolina hum, hum, hum...
E passava os pés no chão, ora com o direito, ora com o esquerdo, arrastando um na frente, puxando como se a sola fosse subir no outro. Com o que firmava esse movimento, dava um pulinho para frente.
Era o João Carolina, pessoa e dança.
Ele perambulava pelas ruas, juntando os meninos onde passava, quando bebia cantava e dançava.
Carolina hum, hum, hum...
Carolina hum, hum, hum...
Sem beber, saía pelas ruas, falando em latim, segundo o cônego que, vez em quando, levava ele à casa paroquial para um banho.
Quando sóbrio, se irritava com a meninada e atirava pedras. E eles vinham gritando atrás dele:
Carolina hum, hum, hum...
Carolina hum, hum, hum...
Chegou à cidade e se agregou a ela, ninguém sabia quem era ou de onde tinha vindo. Não falava nenhuma palavra a não ser em latim.
Ficou João Carolina por causa da dança. Doido, ninguém sabia como. Passava horas falando a mesma frase em latim. Dormia no coreto da praça ou desaparecia nos matos ao redor.
Uma vez o vi, no pasto, deitado no chão com as mãos abertas, gritando bem alto:
- Deus, me ajuda!
Tive coragem e me aproximei.
- Seu João Carolina.
Ele levantou os olhos e me olhou. Não disse uma palavra.
Carolina hum, hum, hum...
Carolina hum, hum, hum...
Não se sabe da mão de qual moleque veio a pedra. Foi bem na testa, o sangue escorreu, formando uma poça no chão. Levei imediatamente para casa, cuidei do ferimento e o deixei dormir lá. Sua noite foi um delírio só. De manhã não falou uma palavra. Foi só aquele olhar calado.
Cada dia me convencia mais, observando João Carolina na rua, de que ele não nascera daquele jeito. Havia enlouquecido no decorrer da vida.
Nascia ali uma cumplicidade demonstrada nos olhares. Mas muito estranha. Havia medo no olhar dele, havia curiosidade e um pouco de medo no meu.
Uma vez o segui pelo mato, ele tirou a roupa e, nu, chorava e gritava.
- Deus, me ajude!
Num ponto da cerca o esperei.
- Seu João Carolina, o senhor está bem?
Ele sentou no chão. Abandonando o latim e começou a falar.
- Eu era padre e me apaixonei por uma mulher casada. Fugi com ela, nos agregamos à Coluna Prestes e andamos muito, sertão afora.
Nasci aqui mesmo; só soube de tudo, já ordenado. Meu pai é daqui, foi abandonado pela minha mãe quando eu era pequeno. E ela me abandonou na rua, em Minas. Fui criado pelos padres e assim me tornei um deles.
Fui vigário em Curvelo. Lá conheci Donana, logo na primeira missa que rezei. Nas confissões a desejava muito, ouvi-la confessar seus pecados me dava prazer e sofrimento. Ela foi notando, pela minha respiração, o quanto me transfigurava naquelas horas. E a cada dia que confessava, seus pecados tinham mais detalhes, mais insinuações. Começamos a trocar também olhares, daí para as juras de amor, no confessionário, foi pouco tempo. Meu conflito com Deus, com a fé e os dogmas da igreja foi nenhum.
Nos deitamos a primeira vez. Já na segunda combinamos fugir e nos juntar à Coluna, que estava na Bahia, e o fizemos na semana, depois da festa do padroeiro, levando toda a renda e os donativos conseguidos. Nas vésperas, recebi uma encomenda do convento. Era carta de padre Anselmo, que relatava minhas origens. Mas não dava tempo de mudar o destino, procurar um pai que eu não sabia existir, levando Donana comigo. Era muito arriscado. Não tivemos problemas nenhum em nos juntar à Coluna, menos ainda em nos adaptarmos à nova vida.
Às vezes, em volta da fogueira, com as mulheres que acompanhavam a marcha, ficávamos bebendo e cantando. Um dia, abusei da bebida, Donana também. Ela começou a dançar, provocando os companheiros, que já não diferenciavam as prostitutas das nossas mulheres. No outro dia, me confessou ter gostado daquilo tudo, não era para me provocar. Deitou com o primeiro, depois daquela dança. Me relatou, passado um tempo, sem omitir detalhes e os nomes dos outros.
Na mesma noite, eu a matei, estrangulada com as próprias mãos; era dia de combate, aproveitei a confusão da batalha e cortei, no facão, a cabeça de trinta e dois companheiros. Oficialmente disseram que foi o inimigo atacando pelos flancos. Levei muitos anos para chegar aqui e descobrir que meu pai morreu faz muito tempo.
O João Carolina ficou silencioso e levantou.
Não consegui fazer nenhuma pergunta.
Me lembro da dor na nuca, da inconsciência. Mas nunca soube quem me socorreu e nunca souberam quem me cortou a língua e as duas mãos.
Leia a obra completa aqui: http://sertaodosaomarcos.blogspot.com/
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sexta-feira, 2 de setembro de 2011
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