quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Nhanubuí - MQ

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No Reduto de São José, despojado de tudo na vida e dela se preciso fosse, Nhanubuí, padecendo da agonia de tirar desforço do oficial das armas, fingia dormir enquanto esperava a hora. A noite punha manto, um negrume retinto na friagem da brisa e nas marolas quebrando silêncios.

Ardentias da aguardente mitigava a espera; o fel todo dentro de dois bornais com pólvora juntada grão a grão durante meses. Tinha demorado a reconhecer o tal Antônio Gomes, agora oficial de farda; não fosse pela cicatriz nas costas até o alto das coxas, que viu quando levou a água do banho, nunca lembraria.

O Itapicuru fazia a água toda, remansado. O casco boleava sem pressa, iam descendo farinha, mel e trançados para a feira no Largo de Nazaré, quando avistaram na margem, o primeiro corpo, antes de encostar avistaram os outros, mortos e retalhados. O choro da criança foi o único sinal de vida... nascia desnatural, do corte mortal na barriga da mãe agonizando.

Criada pelos pacajás, sem peito de mãe, desde pequena ouviu a história do massacre de sua gente, o pai tapuio, pescador de ofício; a mãe índia pacajá com seus quatro irmãos; o avô velho e dois tios com suas mulheres e filhos. Ao todo quinze parentes. Contavam que a mãe, antes de morrer, falou da luta, do ferido que ela mesma lanhou com o terçado, repartindo a carne das costas até as coxas.

Nhanubuí cresceu nos remos e na feitura de farinha, ouvindo sobre sua gente e o jeito como nasceu. Alistado muito novo, andou em muitas Vilas, por muitos anos na Fortaleza da Barra e, por fim, no Reduto de São José; cartucheiro de carga rápida e bom manejo, se preciso fosse. Já estava ali fazia tempo, nem se lembrava mais de sua história, sentia uma pouca lembrança da aldeia onde fora criado, mas vivia sabendo que guardava uma raiva que não sabia de quê; ficava agastado sem motivo; mas gostava de fazer tudo que lhe mandavam. Muito calado, raramente ficava ouvindo as histórias dos outros soldados em volta do fogo.

No Reduto de São José, nenhum comandante durava; cada disputa política na província, saía um e entrava outro. Com eles, novos praças, novas ordens, restando uns poucos, entre eles sempre Nhanubuí que não tomava partido de ninguém, era por si, cuidava as ordens; bebia aguardente escondido antes de dormir, somente quando vinha a zanga.

O novo oficial das armas de nome Antônio Gomes era famoso comboieiro e chefe de captura; velho de riso destravado no olhar ruim; de todos, o melhor comando, camaradeiro e de pouco rigor com as normas. Para Nhanubuí, mais um que tudo queria e pedia só a ele, acostumado a servir prontamente. 

Quando entrou com a água quente o viu de costas, nu, com o sujo manchando o corpo e a cicatriz, um risco reto das costelas até a nádega direita quase formando outra.

A lembrança do que ouviu quando pequeno chegou junto com a danação; estava na frente do homem que matou sua mãe e seus parentes. O sangue esquentou, calando dentro de si a vontade de acabar com ele no mesmo momento que lembrou.

Desse dia, prestou mais atenção no que o oficial contava em suas bravatas; histórias das cambocas seviciadas com os homens da aldeia, peados assistindo a tudo; dos negros homiziados trazidos sem colhões e orelhas. Cada uma delas ouvidas pelos praças, entre risos e a bazófia que tinham pra contar, a minoria, mestiços como Nhanubuí que, silencioso, agora descobria suas pendências... pensava crueldades; lembrava da aldeia onde foi criado... de falarem da beleza da mãe; dele, menino olhando o fogo queimar.

Daquele dia em diante, começou a trabalhar a acangatara, plumagem por plumagem, pena por pena, trançado por trançado, assomado em saber, depois de tantos anos, quem esperava estar morto ser Antônio Gomes. Juntava a pólvora, a aguardente e os chumaços de algodão, escondendo no quarto de banho, esperava o dia.

Nesse, ao ouvir o grito pedindo a água quente, se despiu do fardamento; apenas de acangatara, um archote acesso na mão e o terçado na outra, entrou e fechou a porta com a tranca sem que o oficial nem percebesse. O primeiro golpe acertou a cabeça e a consciência; o segundo abriu a barriga de fora a fora onde Nhanubuí enfiou os dois bornais de pólvora, estancou a sangria com algodão e esperou que ele se mexesse para acender os chumaços embebidos de aguardente enfiados pelos orifícios naturais.

O velho chefe de captura, com a boca cheia de algodão, acabou nem tentando gritar, consciente, olhava o mestiço pacajá vestido para uma grande cerimônia como uma alucinação; sentiu a dor das carnes expostas, o cheiro de sangue e o calor do algodão queimar nos ouvidos.

Tentava soltar o trançado que lhe amarrava as mãos, quando a fumaça encheu o ar e o ventre queimou de uma só vez. Uma dor lancinante o empurrou para nascer dentro da morte.

Nhanubuí ninguém nunca mais viu.  
 
 
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