domingo, 4 de agosto de 2013

João Curto - MQ

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Horas esquecidas aquelas. Parecia madrugada. Silêncio e silêncio. Nenhum remeiro. Nenhum carpinteiro de machado, nem calafates ou o oficial de mancebos. Viva alma parecia estar na Casa das Canoas. A guarnição dormia, o oficial e os praças de pré, em descuido com a munição que deveriam vigiar.

No palácio, o mesmo se dava porque só o Provedor dos Contos trabalhava em silêncio, apenas deixando-se ver pela janela. De repente o martelar na madeira. Hora que começava a funcionar a oficina do Padre Lázaro, no Carmo. Entalhador já no fim da idade mas mantendo o ofício através das mãos de índios e mamelucos. Despertava todos da modorra do meio de dia encalorado.

A oficina esculpia inúmeras peças ao mesmo tempo. O serviço dividido em muitas etapas e por muitos braços tinha em João Curto o mais desenvolvido artífice, orgulho de Padre Lázaro, já fizera um sem número de peças para enviar a Portugal e Espanha, era quem dava os retoques finais em púlpitos, santos, anjos tocheiros, móveis e ornatos. Comandava, junto com o padre, vinte e dois artesãos entre oficiais e ajudantes. O apelido Curto vinha dos pequenos braços que no começo de seu aprendizado entalhava nas imagens.

Era índio canoeiro, levado com a família para as fazendas da Santa Casa ainda menino e de lá para o Carmo pelo Padre Lázaro que via nele o dom de lidar com a madeira, educado na arte e na religião foi sempre o principal ajudante do religioso.

Não falava muito mas era perspicaz e paciente. Usava com desenvoltura as ferramentas, muitas aprimorou para melhor cortar a madeira e dar as formas. Passava todo o tempo na oficina onde dormia. Parecia seu único interesse as imagens que nasciam de suas mãos.

Padre Lázaro envelhecia depressa; fraco, já encurvando e enxergando pouco, passava muito tempo na rede. Dali um dia não levantou mais, a morte o levou silenciosamente.

Foi enterrado na igreja cujos entalhes e imagens foram feitos por ele mesmo com a ajuda de João Curto, pequeno ainda. Seu orgulho de artista era a pequena igreja e o Santo Alexandre, esculpido em itaúba e pintado com as cores mais fortes que se conseguia tirar, tintas feitas de misturas, ensinamentos do velho remeiro mundurucu, de nome Antu que tirava tonalidades do urucu e de muitas outras bixáceas.

As exéquias foram acompanhadas pelas pessoas mais influentes e importantes da província, todos os sinos ecoaram doloridos pela Cidade do Pará. Emissários foram enviados ao interior proclamando o luto.

Terminada a cerimônia, João Curto foi chamado pela Provedoria dos Capelos e Resíduos onde foi submetido a muitas indagações, recebendo depois, em testamento nuncupativo, surpreso, os pertences pessoais do protetor e uma provisão em moedas portuguesas.

Na manhã, conheceu Padre Serzedelo, o novo mestre dos artesãos. Quando ele entrou, João Curto preparava, entristecido, urucu-una para um sombreado. Quando o viu, sentiu um profundo no peito, uma ausência e não conseguiu fazer mais nada direito; sua vida a partir daquele dia mudou, virou um tormento. Começou a não se importar com o ofício; deixou de dormir no Carmo uma primeira vez, ficando à mercê da aguardente. Foi acostumando sair todas as noites; numas voltava, outras não, e em todas bebia.

O deszelo com o ofício deixava Padre Serzedelo enfurecido. João Curto mudara completamente; passava muito tempo alheado, olhando uma imagem começada com o enxó na mão, recusando ajudante; outras vezes parecia furioso e fazia em horas o serviço de semanas. Se bebia, não encostava as mãos nas ferramentas; aparecia desfigurado, sujo e taciturno.

O novo mestre dependia muito dele e não vendo outra forma de tirá-lo da aguardente, confiscou as moedas que restavam; no mesmo dia, começou a sumir vinho do sacrário. Reunida, a Provedoria dispensou João Curto dos afazeres, sem permitir rogativa de Padre Serzedelo, tirando-lhe o lugar de dormir e proibindo sua permanência nas dependências do Carmo.

João Curto nunca mais foi visto por ninguém; sabia-se dele apenas que, por muitos dias, a aguardente que suas moedas puderam comprar ele tomou, desaparecendo depois. 

Os tocheiros, esculpidos em imbaúba, foram encontrados um ano depois dele ter sumido; um de cada lado na porta da igreja, onde Padre Lázaro foi enterrado, guardando a entrada.

As imagens de uma beleza nunca vista, pareciam vivas; as pessoas paravam para admirar. Eram a perfeição. Os olhos pareciam de verdade enxergar; das tochas, as chamas quase dançavam,  apenas os braços curtos seu autor delatavam.
 
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