quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O POVO DO BELO MONTE I - Enunciado

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CANUDOS I - O Povo do Belo Monte

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Enunciado - Cópia do artigo de Brás Teodoro a uma revista de grande circulação que foi censurado pela ditadura.


Quando começam as pesquisas arqueológicas no sítio onde era o Belo Monte e onde se passaram as batalhas da Guerra de Canudos, rapidamente, mesmo com os técnicos apontando outro lugar tão ideal quanto, começam a construção da barragem de Cocorobó no Vaza-barris. Suas águas vão encobrir toda a região. São políticos ainda fardados escondendo seu passado, encobrindo rastos.

Não entendo a falta de estudos sobre o episódio de Canudos. Uma utopia? Não é assim que penso o assunto. Houve uma realidade ali, não era sonho aquilo; não era um bando de coitados e um louco. Nem tampouco alguma ideologia vinda de onde quer que fosse e assimilada por desamparados. Tudo aquilo foi construído pela necessidade e acabou unindo o destino individual e o coletivo, dando sentido à vida do povo que sofria com a seca e o abandono. Dessa história, nossa realidade, precisávamos cuidar melhor, aprender com ela. E não é por outro motivo senão por nós mesmos, por cada um de nós. A ignorância não deveria mutilar tanta gente como ocorreu e como ocorre até hoje.

As razões da existência dos beatos estão na seca, na miséria consentida pelo poder da política, das oligarquias e da religião; na transferência dos registros da Igreja para o Estado, entendida como uma forma nova de escravidão. Daí as revoltas como as do Ronco da Abelha e do Quebra Quilo.

As origens da congregação de tantas pessoas em torno do beato Antônio Conselheiro estão na necessidade de se juntarem contra o infortúnio da seca e da miséria que marcou e marca até hoje o sertão nordestino. Isso tudo está nos ensinamentos e pregações do Padre Ibiapina – cearense, estudioso e fazedor, que deixou a toga pela batina e inspirou no sertanejo essa mistura de fé e esperança com provimento; ensinava ir fazendo sem por ninguém esperar: nem estado e nem igreja.

Foi assim que o catolicismo sertanejo, nascido do descaso da igreja e do estado, começou a aparecer, através da Irmandade dos Beatos, no pensamento de Ibiapina... Foi assim que dezenas de obras sociais e públicas foram construídas. Assim surgiram as Casas de Caridade que cuidavam da saúde, educavam, reuniam os desvalidos na construção dos açudes, cemitérios, igrejas e asilos... acabando por se transformar em instituição paralela, incômoda e perigosa ao poder constituído, até Ibiapina ser proibido pela Igreja do Ceará. Mas aí, a Irmandade dos Beatos já havia deixado livros e ensinamentos contendo as Regras do Bem Viver; ajudando formar muitos seguidores que perambulavam pelo nordeste: beatos, beatas, sacerdotes ou não, entre eles – compartilhando o pensamento - Padre Cícero, Conselheiro e muitos outros.

Tantos viviam sem oportunidades, com a fome e a sede empurrando-os para qualquer servidão, que de pertences só tinham mesmo as algemas da miséria, oferecidas por degradantes proprietários de terras – que formavam outro poder, tanto no Império quanto na República, legislando em conivência com a Igreja.
Com o Imposto do Chão tirado da boca, a dignidade andava muito mais perto dos rastos de um beato do que em qualquer povoado onde os donos da terra reinavam com o Colete de Couro: eram as oligarquias, a política e a igreja espremendo vontades.

O militarismo se engalfinhando e se omitindo, ampliando seus séqüitos... os políticos em conchavos recebendo até patentes. Uma luta inventada no sertão assedentado; os desvalidos fazendo falta aos senhores e seus grilhões. Forças estaduais despreparadas, abrindo até prisões para formar contingentes. Estranho para o exército grande que tínhamos. Alguém se opunha verdadeiramente à República? Ou seria nosso militarismo se justificando? Será que eles não precisavam de um acontecimento grande para isso? Para se projetar nacionalmente?

O Belo Monte ou - como a maioria chama - Canudos era uma pequena comunidade de algumas casas quando Antônio Conselheiro chegou lá com seus seguidores, depois de passar muitos anos peregrinando pelo sertão, deixando por onde passava um rasto de dignidade, apesar de a intolerância queimar as mãos dos poderosos.

Por que construir uma comunidade ali? Será que não era pelo número de pessoas que já o seguiam? Pela perseguição que lhe faziam? Será que um beato construtor de igrejas, açudes, pontes e cemitérios, ao ver tanta gente para alimentar, não pudesse ter a simples idéia de parar num lugar e iniciar um lugarejo, conclamando seus seguidores a viver e produzir para a boca, escolhendo a beira de um rio quase perene, o Vaza-barris, escolhendo construir melhor um modo de viver e poder olhar todos nos olhos?

Por que um lugar miserável se ali não se passava fome? Entrava e saía, qualquer um, quando quisesse; trabalhavam e o que cada um produzisse, uma parte era usada para ajudar quem vinha chegando. Como era construir uma igreja naquela época? E casas de taipa com o luxo de passar barro, pintando as paredes? Plantar, colher, criar animais de corte, fazer farinha, comercializar na redondeza o excedente e dar ao estado a maior fonte de receita do imposto de exportação sobre peles? Andar pela região por anos seguidos sem cometer nenhum crime, sem roubar, sem atacar ninguém; ver dia após dia gente de todo o sertão integrar aquela comunidade, acreditando uns nos outros?

Não obedecer a algumas leis, legisladas na complacência dos próprios interesses, contestar a cobrança de um imposto municipal que o executivo arbitrava despudorado, quase no valor da coisa vendida... é um crime? Então, reclamar uma mercadoria paga e não entregue seria outro? Intitular-se contra um regime político é crime? Desvalidos combatendo a República ou encontrando caminhos e contagiando o sertão todo? Qual tamanho de indignação pode caber num homem?

Um doido, um fanático, não constrói um lugar do quase nada; não congrega tanta gente em volta de si e de suas idéias se nelas não houver uma verdade e uma esperança. Um demente religioso fanático não permite a liberdade se processar fora de sua doutrina; não luta contra a escravidão... Há uma grande injustiça histórica quando se omite Antônio Conselheiro ao se falar do abolicionismo. Sobre isso existem relatos de imigrantes italianos que trabalharam na construção da estrada de ferro que corta a região e testemunharam pregações dele contra a escravidão: os escravos andavam distâncias para ouvi-lo.

Estranho um monarquista ser o abolicionista que foi. Não dá para ser simplório e achar que entre os escravos não existia alguma formação; que muitos deles não descendiam de mouros, islâmicos, acostumados a lutar... eram alfabetizados e ensinavam aos seus descendentes. Imagine a cultura e a índole indígena dobrando-se a um fanático religioso, trabalhando junto. Não dá para entender isso possível no tão pouco tempo do Belo Monte. O povo achando uma forma de ser, juntando-se em caminhos.

Foi o melhor esboço sobre a nação brasileira que, infelizmente, a maioria não viu. Não dá para supor que as raças que compõem nossa etnia fossem naquela época destituídas de suas culturas... não dá pra imaginar uma comunidade que funcionava como outra qualquer, existir apenas seguindo um pregador, que diziam ser messiânico até a morte.

Uma coisa é reunir multidões para ouvir uma pregação, fazer um protesto, uma manifestação política ou qualquer coisa sobre o que quer que seja... até para cobrar um dízimo... basta ter carisma. Mas, outra é manter um arruado funcionando, juntando os desiguais; reunindo a moeda imperial com a republicana e a dela própria; merecendo crédito na redondeza, possuindo organização própria, administração civil e religiosa, duas escolas e até cadeia que chamavam poeirão, por estar sempre vazia. Será que não seria mais lógico aprender com esses fazedores? Gente que teve a capacidade de matar para defender seu lugar, mais ainda de morrer por ele?

Em Belo Monte, o culto religioso não era obrigatório: também não se obrigavam casamentos; existiam mães solteiras, mas elas não sofriam preconceitos, tudo era dividido entre todos que viviam nas Regras do Bem Viver, não só comida, ferramentas, mas afeição e solidariedade também. As pessoas trabalhavam, tinham a liberdade de entrar e sair, de comercializar. Restrições mesmo só à cachaça e à prostituição.

Ideais não saem das formas de governo, mas nações podem nascer de ideais. Canudos como ética redentora... à espera do Messias... marxista... e outros rótulos legados por nossa política militarista e pela imprensa da época, por interesse ou ignorância dos fatos, testemunhos duvidosos, pressão e exigência ou endosso da maioria dos poderosos da Nova República.

Será que os conselheiristas não faziam falta nas listas de votação tanto quanto na força de trabalho remunerado de qualquer jeito? Será que não se temia fosse Antônio Conselheiro eleito por seus seguidores?

Temos Villa Lobos, Guimarães Rosa e Cândido Portinari, mas na prática não temos na nossa formação e nem na nossa cidadania. Temos o episódio de Canudos mas na prática também não o temos. Minha crítica é aos nossos historiadores... sim, aos nossos educadores, ao nosso jornalismo preguiçoso, à nossa despreparação no quesito brasilidade.

Francisco de Assis, Antônio de Pádua e mais pelo menos uma dúzia de outros tiveram uma vida pessoal bem parecida com a de Antônio Maciel. Ele santos venerados.. o nosso brasileiro... um fanático? As prédicas que ele deixou escritas em dois cadernos demonstram coerência e não o contrário. Por que será que foram deixados de lado por jornalistas, educadores e escritores?

Desgarrado de qualquer laço com a riqueza e a hierarquia instalada, Antônio Conselheiro sucumbiu junto ao povo do Belo Monte sem que o governo, a polícia, os juízes, o exército, o poder da Igreja, atiçados por intelectuais, entendessem aquela visão de mundo. O episódio carrega a dor da injustiça, o genocídio de um povo que vivia da palavra do mesmo Deus em que seus algozes acreditavam, do seu trabalho e de fazer o bem.

Tenho certeza, jamais vou entender essa lógica de que a história está escrita e só temos que preencher os papéis; esse conformismo não cabe dentro da minha vida, dentro da minha arte e nem dentro da minha brasilidade.

A história do povo do Belo Monte passa por conhecer o que era o sertão nordestino na época do catolicismo sertanejo; conhecer Antônio Vicente Mendes Maciel desde o início de sua peregrinação, o beato construtor de cemitérios, açudes, igrejas... O abolicionista que pregava aos escravos e aos destituídos, a palavra do Deus em que acreditava e tirava do nada a dignidade e a esperança.
Passa por entender a região com relação ao homem nas grandes secas seguidas que empobreceram cada vez mais o sertão e escravizaram os livres aos cativeiros dos grandes donos de terras e usinas que acabaram usando o escravo e o homem pobre igualmente pelo poder de dono e de possuidor.

Passa por entender a igreja com suas múltiplas verdades sempre atrelada aos poderosos por séculos e séculos; suas contradições e culpas impostas, não aceitando a própria palavra do seu Deus pregada pela boca e gestos de um simples beato penitente que ela, por conveniência, ajudou a criar.

Passa por entender o momento histórico que foi a falta de braços depois de acabar a escravidão, e a falta que fazia o trabalho de cada sertanejo seguindo o beato.

Passa por entender a imprensa quase sempre servindo às elites, amplificando interesses. Passa por entender nossas forças armadas, na época mais força e mais armada com a República começando e já começando com as disputas mesquinhas pelo poder.

E por entender o custo do deslocamento de grande parte do exército, tropas de quase todos os estados, abastecidos com certeza pela ganância comercial que ronda as contas públicas; quem no mundo se negaria a emprestar somas à jovem República militar repleta de riquezas - e sabida por todas as inglaterras do mundo - naquele momento ameaçada por um poderoso líder local, vestido de túnica azul e com um cajado na mão, lançando pela boca sua arma poderosa e mortífera, enquanto a elite europeizada acreditava em trazer emigrantes para trabalhar a um custo absurdo, ao invés de usar nossos miseráveis sertanejos, fazedores, ex-escravos e mestiços iletrados como força de trabalho? Quanta dignidade poderia ser ensinada e aprendida? Sobre muitas dessas coisas passamos ao largo ou superficialmente e não deveríamos.

Existem perguntas demais para serem respondidas. Apesar de, de poucos anos pra cá, graças a alguns incansáveis e abnegados estudiosos, estar aparecendo relatos e estudos interessantes. Acho pouco, muito pouco o que sabemos. Parece que esse assunto ficou nos porões da nossa República há tanto tempo que o descaso apagou.

Mas falta muito sobre o assunto. O episódio de Canudos deveria ser dissecado em todos os aspectos, desde o catolicismo sertanejo que supria não só o espiritual do povo do sertão, mas até o material no estado omisso, passando por entender todas as ligações políticas e religiosas que formavam o emaranhado do poder; até as prédicas de Antônio Conselheiro que ele deixou e que foram solenemente ignoradas por muito tempo, preferiram utilizar oficialmente outros escritos que não o traduziam. Ele era poeta também e suas prédicas, cartas e versos, sua despedida, como abaixo, só o revelavam.

“ Preza aos céus que abundantes frutos produzam os conselhos que tendes ouvido; que ventura para vós se assim o praticardes; podeis entretanto estar certos de que a paz de Nosso Senhor Jesus Cristo, nossa luz e força, permanecerá em vosso espírito. Ele vos defenderá das misérias deste mundo; um dia alcançareis o prêmio que o Senhor tem preparado (se converterdes sinceramente para Ele) que é a glória eterna. Como não ficarei plenamente satisfeito sabendo da vossa conversão, por mim tão ardentemente desejada? Outra coisa, porém, não é de esperar de vós à vista do fervor e animação com que tendes concorrido para ouvirdes a palavra de Deus, o que é uma prova que atesta o vosso zelo religioso. Antes de fazer-vos a minha despedida, peço-vos perdão se nos conselhos vos tenho ofendido. Conquanto em algumas ocasiões proferisse palavras excessivamente rígidas, combatendo a maldita república, repreendendo os vícios e movendo o coração ao santo temor e amor de Deus. Todavia não concebam que eu nutrisse o mínimo desejo de macular a vossa salvação (que fala mais alto do que tudo quanto eu pudesse aqui deduzir) me forçou a proceder daquela maneira. Se porém se acham ressentidos de mim, peço-vos que me perdoeis pelo amor de Deus. É chegado o momento para me despedir de vós; que pena, que sentimento tão vivo ocasiona esta despedida em minha alma, à vista do modo benévolo, generoso e caridoso com que me tendes tratado, penhorando-me assim bastantemente! São estes os testemunhos que me fazem compreender quanto domina em vossos corações tão belo sentimento! Adeus, povo, adeus aves, adeus árvores, adeus campos, aceitai a minha despedida, que bem demonstra as gratas recordações que levo de vós, que jamais se apagarão da lembrança deste peregrino, que aspira ansiosamente a vossa salvação e o bem da Igreja. Preza aos céus que tão ardente desejo seja correspondido com aquela conversão sincera que tanto deve cativar o vosso afeto.”

Não custa lembrar que parte da ralé do vitorioso exército, que chacinou os conselheiristas, ficou acampada no Rio de Janeiro, no, antigamente chamado, Morro da Gamboa, de frente ao Ministério da Guerra ou ao nome que isso era chamado na época, esperando as medalhas e decerto o soldo e por terem lutado no alto da Favela, viraram os favelados... originaram nossas favelas e os problemas que elas carregam em si; um monstro já velho, nascido bastardo no ventre fardado da nossa jovem República.

Acho absurdo estarmos perdidos de nós mesmos. Tem hora que penso que minha lucidez com relação à Brasilidade é insanidade, por isso pinto minha loucura, entalhes de angústia, amor e dor.

Brás Teodoro


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