sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

MARCUS VINICIUS DE ANDRADE - Produção Cultural e Propriedade Intelectual

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PRODUÇÃO CULTURAL E PROPRIEDADE INTELECTUAL

Marcus Vinícius de Andrade,compositor,mastro e dramaturgo,Presidente da AMAR/SOMBRÁS

A Propriedade Intelectual é, hoje, um dos itens prioritários da economia global e um dos temas mais discutidos nos foros internacionais. Sua relevância fica evidente quando se sabe que, na atualidade, os direitos de autor, na Inglaterra, movimentam mais recursos que a tradicional indústria naval; da mesma forma, as atividades que produzem direitos de autor significam 7,2% do PIB do México (dados de 2003), superando o agronegócio; nos Estados Unidos, a indústria cultural é responsável por mais de 4% do PIB do país (dados de 2002). Isso confirmaria porque, de alguns anos a esta parte, a Propriedade Intelectual vem ganhando maior relevância na agenda da Organização Mundial de Comércio – OMC, a ponto de ser objeto de um protocolo especial, o chamado Acordo TRIPS.


A valoração econômica da Propriedade Intelectual tende a aumentar com a eclosão das novas tecnologias. Com a crescente difusão de obras intelectuais através dos meios digitais, o mundo dos suportes físicos começa a entrar em declínio, passando a ser substituído por modos de produção, distribuição e comercialização inteiramente nova e, sobretudo, mais ágeis. No atual ambiente digital, a antiga economia voltada para a produção de bens/serviços cede lugar a uma nova economia, de licenças e direitos. Com o declínio (e até mesmo a perspectiva de eliminação) da circulação de bens intelectuais através de suportes materiais, a sociedade global incorporou a consciência de que a produção de conteúdo e a criação intelectual são os principais componentes das indústrias da cultura. Não por outra razão, há alguns anos os Estados Unidos resolveram aderir a Convenção Universal de Berna sobre Direitos de Autor, que vinham rejeitando desde 1886.

Paradoxalmente, no momento em que tudo isso ocorre, vemos eclodir também uma corrente de pensamento (surgida de interesses comerciais setorizados) que advoga a idéia de que os institutos da Propriedade Intelectual e do Direito Autoral devem ser minimizados ou até mesmo eliminados na nova ordem global. Defendendo a adoção do conceito de copyleft (em oposição ao de copyright), tal corrente justifica seus propósitos amparando-se em duas razões:


1) a circulação de bens intelectuais deve ser irrestrita e a mais ampla possível, inclusive para estímulo da diversidade cultural;

2) a facilitação trazida pelas novas tecnologias à produção/distribuição de bens culturais implica na quase total impossibilidade de controle do uso de obras no ambiente digital, daí a necessidade da flexibilização e/ou da relativização do instituto da Propriedade Intelectual, que supostamente inibiria o acesso universal à cultura.

Por mais bem-intencionadas que pareçam, tais idéias devem ser vistas com reservas, não apenas por sua juridicidade duvidosa, como também pelos equívocos culturais que acarretam. Em primeiro lugar, a comunidade internacional encaminha-se para o consenso de que não há qualquer incompatibilidade entre a defesa da Propriedade Intelectual e o estímulo à diversidade cultural. Tanto a Declaração da UNESCO pela Diversidade Cultural (2001), bem como o Projeto de Convenção sobre o mesmo tema (previsto para 2005) estabelecem claramente que a Propriedade Intelectual deve ser obrigatoriariamente protegida, ressalvando também que “el caráter específico de los bienes y servicios culturales que, en la medida en que son portadores de identidad, de valores y sentido, no deben ser considerados como mercancías o bienes de consumo como los demás”. Com isso, firma-se o princípio de que a produção cultural não deve ser regulada por disposições meramente comerciais, nisso consistindo a chamada exceção cultural, preconizada por muitos países do mundo (notadamente os da Comunidade Européia), embora com a oposição dos EUA.


Quanto ao controle da Propriedade Intelectual no mundo digital, já está evidente que ele é plenamente factível, bastando usar-se as mesmas tecnologias que facilitam a produção/ distribuição de bens intelectuais em escala planetária. Ademais, tais facilidades não podem servir de pretexto para que violações legais sejam permitidas ou estimuladas – da mesma forma que o fato de existirem armas de fácil venda no mercado não implica que seus usuários tenham uma expressa licença para matar.

Afora sua incompatibilidade com o ordenamento jurídico vigente na maior parte dos países do mundo, as propostas de flexibilização da Propriedade Intelectual (inclusive projetos como o Creative Commons), devem ser postas sob reserva à luz de outras questões, tanto de natureza econômica-social, de política cultural e até mesmo de cunho ético. Nesse sentido, cabe argumentar que:

1) Não pode haver estímulo à cultura penalizando-se economicamente os que produzem cultura. No momento em que se se reconhece a Propriedade Intelectual como valor fundamental da nova economia global, a desvalorização dos criadores é um paradoxo;

2) os criadores intelectuais não podem perder a única fonte de compensação por seu trabalho; com isso, se desestimula a própria atividade criadora; é correto que alguém crie sem remuneração?

3) os criadores não podem ser os únicos chamados a pagar a conta da democratização do acesso das comunidades aos bens culturais; será que os outros elos da cadeia produtiva da cultura (editores, gravadoras, exibidores, provedores, etc.) estariam também dispostos a diminuir seus ganhos e flexibilizar seus preços?

4) a flexibilização de direitos solicitada aos criadores vem servindo apenas para agregar valor ao negócio das grandes corporações da indústria cultural;

5) a flexibilização dos direitos também não pode ser o pedágio pago pelos criadores para poderem ingressar no mercado, sabidamente controlado pelos monopólios da produção e da mídia;

6) os projetos de flexibilização da Propriedade Intelectual podem servir a países que são consumidores de cultura. Nos países produtores de cultura (como o Brasil), eles são inibidores da geração de riquezas e da valorização da cultura como ativo econômico;

7) por outro lado, se os Estados desejam ampliar a difusão da cultura, devem fazê-lo através de políticas concretas de incentivo à distribuição e divulgação de bens culturais, notadamente os de produção independente, em vez de estimular os autores a cederem ou flexibilizarem seus direitos.

Entendemos que os Direitos de Autor possam ter algumas limitações legais nas sociedades subdesenvolvidas e pré-industriais e/ou em contextos em que há efetivas carências sócio-culturais: é o caso de alguns países da África e da América Latina, em que o consumo de bens culturais necessita ser efetivamente estimulado. Nenhum criador jamais se opôs a isso, a prática o demonstra. O que não se pode admitir é que a flexibilização de direitos autorais seja incentivada em países desenvolvidos e industrializados, apenas para incrementar os negócios das grandes corporações da indústria cultural, aumentando o seu poder de fogo monopolista.

No Brasil atual, vivemos um paradoxo: enquanto a defesa da Propriedade Intelectual é incentivada no setor industrial (em que não somos tão expressivos), ela vem sendo desestimulada na área da cultura, justamente aquela em que temos acentuada participação econômica e reconhecida inserção internacional.

Embora reconheçamos que projetos como o Creative Commons possam ter um conteúdo renovador nos países que adotam o sistema de copyright (em que a hegemonia empresarial mantém os criadores sob tutela e onde também há uma grande confusão entre Propriedade Industrial e Direito Autoral), nos países em que vigem os princípios do Direito de Autor (como o Brasil), eles são inteiramente desnecessários, porquanto o ordenamento constitucional e jurídico já estabelece que os criadores detêm a plena disponibilidade sobre suas criações intelectuais, o que lhes permite aproveitá-las (economicamente ou não) da forma que julgarem mais conveniente, podendo cedê-las, licenciá-las, ou até flexibilizá-las, se for o caso. Nesse entendimento, o Creative Commons é apenas um novo nome para uma prática já consolidada em países que adotam o Direito de Autor, não constituindo um instituto inédito ou renovador. No Brasil, ele apenas oferece, aos criadores, prerrogativas que os mesmos já possuem - estando também longe de ser um atributo de justiça ou uma reforma agrária autoral, como afirmou apressadamente o Ministro Gilberto Gil quando no cargo.

O fato do discurso pela flexibilização dos direitos autorais vir servindo basicamente para facilitar a atividade das grandes corporações da indústria cultural, aumentando a mais-valia de seus negócios, justifica porque tal idéia vem sofrendo ampla rejeição internacional.

Por outro lado, haveria que admitir que, se as questões sociais devessem ser resolvidas pela diminuição, limitação e/ou flexibilização dos direitos da cidadania (como parece propor o idéario neo-liberal), a sociedade teria a justa prerrogativa de pleitear a adoção de uma espécie de Essencial Commons, no qual se previsse também o rebaixamento dos custos da alimentação, da terra, da moradia, do ensino, da saúde, dos bens de consumo, etc., como forma de permitir o acesso dos cidadãos a esses itens, tão prioritários quanto a cultura.

No caso específico de nosso país, entendemos que o Governo brasileiro vem se mostrando ineficiente na salvaguarda dos direitos e garantias da cidadania, inclusive na área cultural e, especificamente, no campo do Direito de Autor. Ao contrário, o Governo vem optando por querer tutelar a Sociedade Civil, assumindo uma postura intervencionista (como no caso do Projeto ANCINAV, que propõe uma absurda limitação patrimonial dos direitos autorais nas obras audiovisuais e a própria estatização da gestão de tais direitos), que viola expressamente o Art. 5°, inciso XXVII da Constituição Federal, uma cláusula pétrea da Carta Magna.

O projeto ANCINAV também contraria os princípios do Convênio de Berna, do qual o Brasil é signatário e sobre o qual se baseia nosso ordenamento jurídico sobre Direitos de Autor, violando ainda as disposições de proteção autoral estabelecidas nos Tratados que firmamos no âmbito da Organização Mundial de Comércio – OMC, o que poderá ensejar sanções econômicas ao país. Entendemos ainda que, ao endossar projetos de limitação e/ou flexibilização de direitos autorais, de forma genérica e indistinta, sem levar em conta sua adequação a necessidades efetivas, o Governo brasileiro apenas desestimula a criação e os criadores nacionais, aumentando seu empobrecimento e ampliando sua dependência e tutela pelos monopólios de produção e comunicação da indústria cultural, o que é mais grave.

Os Governos podem muito, mas não podem tudo. Quando Ministro da Cultura, Celso Furtado - a quem agora rendemos uma homenagem - dizia que o Estado é a forma suprema de organização da sociedade. Devendo agir em prol do bem comum, cabe ao Estado exercer papel regulador e normativo. No entanto, jamais ele poderá arvorar-se em tutor da sociedade ou incentivar sua submissão aos interesses de agentes econômicos privados ou mesmo públicos. Uma sociedade democrática, de cidadãos livres, não pode conviver com tal situação, nem permití-la. Esse parece ser o desafio que vivemos atualmente na discussão pública da cultura.

A defesa da cultura brasileira passa obrigatoriamente pela defesa do instituto da Propriedade Intelectual, não apenas como um valor humanístico em si, mas também como um valor econômico, como um fator gerador de riquezas, cujos benefícios inevitavelmente reverterão para a sociedade como um todo.




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