quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Tributo a dois grandes mineiros

 

As letras mineiras perderam, nas últimas semanas, duas de suas maiores expressões no campo da prosa e do verso. Autran Dourado e Affonso Ávila, o romancista e o poeta que acabam de nos deixar, são homenageados aqui por Humberto Werneck e Sebastião Nunes, escritores que vieram depois e sob as bênçãos deles, para que sua grande arte não morra também.

SEBASTIÃO NUNES1

Tinha a poesia de Affonso a me conduzir e se autoexplicar, naquilo que se tornou o mais proveitoso aprendizado artístico de minha vida
O poeta Affonso Ávila parte em visita ao escultor Aleijadinho

Em 1974, topei um enorme desafio: transformar em livro os versos datilografados da "Cantaria Barroca", de Affonso Ávila. O desafio não estava nos versos, mas na construção dos poemas. Extremamente rigoroso, Affonso imaginou seu trabalho como um objeto, ao mesmo tempo, literário e visual, uma linguagem remetendo à outra e ambas se completando. Dito assim, pode ser difícil de entender, mas a imagem que ilustra esta crônica explica melhor. O "&", que está presente no livro inteiro, cria, no poema "Casa dos Contos", uma diagonal de cima para baixo e da esquerda para a direita, do primeiro ao último verso.

Desafio aceito - eu, no Rio, ele, em BH -, parti para a dura empreitada. Na época, anterior aos recursos da diagramação eletrônica, o maior avanço era a "Letraset", conjunto de caracteres de tamanhos variados, cada folha com o alfabeto completo. As letras eram pressionadas sobre o papel, soltando-se do suporte plástico e fixando-se na folha. Trabalho vagarosamente artesanal, construído letra a letra.

Foi um longo e difícil percurso. Para me ajudar na viagem, eu tinha as fotos de Maurício Andrés sobre os delírios do pedreiro Vado Ribeiro. Mas, principalmente, tinha a própria poesia de Affonso a me conduzir e se autoexplicar, naquilo que se tornou o mais proveitoso aprendizado artístico de minha vida. Sim, então era assim que se fazia grande poesia! Diante de mim, verso após verso, lá estava um dos maiores, mais belos e mais lúcidos conjuntos de poemas brasileiros do século XX. Foi lançado em 1975, no centenário da publicação do delicioso "Elixir do Pajé", de Bernardo Guimarães, joia preciosa, rara e quase clandestina de nossa poesia satírica.

SURGE O GURU

Conheci Affonso no feliz-infeliz ano de 1964 quando, recém-chegado à faculdade de Direito da UFMG, ouvi sua palestra Iniciação Didática à Poesia de Vanguarda. Ele tinha 36 anos e eu, 25. Na prática, essa diferença de 11 anos era imensa. Enquanto eu mal sabia o que era poesia (sempre fui lerdo no aprendizado de sutilezas desse tipo), Affonso já estava maduro e trabalhando bastante, além de conhecer, ler e se corresponder com meio mundo literário. Vivendo em Belo horizonte, sua antena captava sinais luminosos não só do Brasil como da Europa. Estava sempre atualizado e comprometido, numa via de mão dupla.

Dois anos depois, passei a frequentar sua casa, em que ele e Laís, com a boa vontade mansa mas exigente dos gurus orientais, ensinavam a "meninada" a descobrir o caminho das pedras. Foi a partir daí que nossa turma, que se reunia no Suplemento Literário na Imprensa Oficial e se reencontrava à noite no Lucas, aprendeu o básico. E esse básico era não admitir limites para a criatividade. Nem fragilidade na construção poética.

CRESCE O RIGOR
Exigente consigo mesmo e com os outros, trabalhando cada poema como um artesão quebrando pedra ou um ourives polindo diamante, Affonso nos ensinou que acima de tudo era preciso conhecer o que se fazia de melhor no mundo da criação, no máximo de países e de línguas. O resultado desse aprendizado só podia ser altamente positivo, limitado, é claro, pelo potencial de cada um. Nesse sentido, o poeta Affonso Ávila cabe inteirinho na formulação de Millôr Fernandes, outro dos grandes que nos deixou: "Só há um homem respeitável - aquele que realiza o máximo do potencial de personalidade que a natureza lhe deu. Que isso seja pouco porque o destino lhe foi parco em dádivas de talento e habilidades não o desmerece. O que o desmerece é a humildade, é o não tentar. O que o desmerece é o não se descobrir, o não se pesquisar, o não saber para que veio e que notícia traz". Na pena no extraordinário humorista, a densidade do humanista sábio.

Affonso não deixava por menos. Nunca foi humilde e nunca deixou de tentar. Mais do que todos nós, recebeu muito do destino, e usou ao máximo as dádivas de talento e habilidade que a natureza lhe concedeu com prodigalidade. Por isso, se tornou grande, como um dos intelectuais brasileiros mais importantes e respeitados de seu tempo, apesar de nem sempre ter sido reconhecido como merecia. Mas isso é outra questão e faz parte da oposição frequente entre prestígio e fama, que algum dia discutirei com calma.

BARROCO

Muito cedo Affonso se interessou pelas raízes de nossa cultura, mais precisamente pelo barroco, produzindo em 1965 o monumental "Resíduos Seiscentistas em Minas", publicado em 1967.
Em 1969, organizou e lançou, no Festival de Inverno de Ouro Preto, o primeiro número da revista "Barroco", editada pela UFMG. Daí em diante, se desdobrou entre criação poética - com forte influência das pesquisas em barroco - e o trabalho de ensaísta e de divulgador de nossas raízes. Em 1979, nova obra-prima, "Barroco Mineiro/Glossário de Arquitetura e Ornamentação", em parceria com os arquitetos João Marcos Machado Gontijo e Reinaldo Guedes Machado, que diagramei e foi lançado numa coedição entre Fundação João Pinheiro e Fundação Roberto Marinho. Em 2005, finalmente, publica o número 19 da revista "Barroco", comemorando 35 anos de sua criação.

Além disso, incansável, organizou encontros nacionais e internacionais, com a presença de especialistas brasileiros e do exterior. E ainda teve tempo para palestras e outros trabalhos de divulgação, sem contar a série de livros que continuou publicando sobre o tema e que o colocam, hoje, como o principal estudioso do barroco entre nós.

DIFAMAÇÃO DO POETA

Entre os trabalhos poéticos menores em volume, mas igualmente densos, destaca-se o "Discurso da Difamação do Poeta". É uma obra primorosa pela desconstrução da linguagem oficial e do efeito deturpador dos boatos, recurso que empregou amplamente em outros livros, como no "Código de Minas" e no "Código Nacional de Trânsito", publicado numa singela edição de 200 exemplares (a mesma tiragem do "Cantaria Barroca"), mas reproduzido integralmente no "Jornal do Brasil", multiplicando por milhares seu alcance.

O espaço de uma crônica não é o espaço de um livro, como seria necessário. Foi uma vida longa, preenchida criativamente até o fim, sem esmorecimento. Até logo, imenso poeta! - balbuciamos nós, seus amigos que ainda não fomos chamados.


& em cada conto te encontr
o & em cada enquanto me enca
nto & em cada arco te a
barco & em cada porta m
e perco & e em cada laço t
e alcanço & em cada escad
a me escapo & em cada pe
dra te prendo & em cada g
rade me escravo & em ca
da sótão te sonho & em cada
esconso me affonso & em
cada cláudio te canto & e
m cada fosso me enforco &



HUMBERTO WERNECK2

Uma formiga da Literatura

São todas excelentes, confirmo agora ao repassá-las, as lembranças que tenho de Autran Dourado, falecido no Rio faz uma semana. Lembranças que, primeiro, me deixaram seus livros, alguns deles lidos, relidos e esmiuçados no ardor de meus longínquos 20 anos de idade. A barca dos homens, romance que me impressionou ao ponto de haver sacrificado rarefeitas finanças de estudante para mandar encaderná-lo. E também meu exemplar de Nove histórias em grupo de três (depois rebatizado Solidão, solitude), livro admirável que volta e meia revisito.
Andava pelos 22 quando conheci Autran Dourado, um senhor de 41 anos, bigodão vitalício e uma cara séria (sem prejuízo, vi depois, de ribombantes gargalhadas) que a meus olhos o distinguia de outros mineiros igualmente instalados no Rio e na glória literária: Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, quatro cavaleiros extrovertidos, exuberantes, amolecados. Cigarras da literatura, achava eu, em oposição à formiga das letras que foi Autran Dourado.
Não estava de todo equivocada a minha avaliação juvenil. Por temperamento mas também escolha, não havia nele certa mundanidade que aos outros conferia cintilação social. Na sua geração, pelo menos, aquela que teve estreia tipográfica na década de 40, não vejo muitos escritores que tenham explorado tão radicalmente cada grão do talento que lhes coube, e nenhum que tenha tido com a literatura relação mais obstinadamente monogâmica.
Autor de maus versos na juventude, como quase todo iniciante, Autran Dourado não tardou a embicar pelo território que seria o seu, o do romance. "Investi tudo, a vida inteira, na carreira de romancista", me disse ele certa vez, "e se amanhã aparecer com um livro de poesia, será um mau livro, porque Deus é justo..." Nos anos 70, trocou divertidas farpas com Fernando Sabino quando o amigo, paralisado sob o peso do sucesso de O encontro marcado, que o impedia de reincidir no gênero, andou anunciando que o romance estava morto. "Gozado o Fernando", comentou Autran. "Foi campeão de natação, e agora, que já não dá conta de nadar, quer esvaziar a piscina..." O nadador, como se sabe, recuperou o fôlego e voltou à raia com braçadas de romancista para delivrar O grande mentecapto, em 1979.
Autran Dourado tinha horror a algo para ele muito brasileiro, o "mito do escritor ignorante", aquele que apenas se deixa levar pelos acasos de um talento maior ou menor. Não acreditava em escritor que não se dedicasse cotidianamente ao aprendizado do ofício, e achava um absurdo dizer-se que "fulano escreve muito bem" - pois num escritor, insistia, escrever bem é requisito básico, eliminatório. "O escritor tem que saber escrever", me disse ele, "para depois desaprender." Convicção que ele creditava não a um homem de letras, mas a um artista plástico, o pintor Guignard, de quem esteve muito próximo em seus anos de formação. Guignard, dizia Autran, não acreditava em artista que não soubesse desenhar muito bem, "e com lápis duro", que não permite refazer o traço, antes de chegar ao guache, ao óleo.
Escrever foi seu projeto prioritário, e para viabilizá-lo Autran cuidou de providenciar um ninho, uma segurança material que o dispensasse de se esmerilhar na ganhação da vida. Tranquilidade que lhe veio no começo da década de 60, sob a forma de um cartório presenteado por Juscelino Kubitschek, a quem servira nos governos de Minas e da República como redator de discursos e secretário de imprensa. Experiência, aliás, que na maturidade renderia um saboroso livro de memórias, Gaiola aberta, farto em revelações por vezes espantosas - como o hábito que tinha JK de convocar assessores, Autran inclusive, para com eles despachar enquanto tomava banho de banheira.
No final do mandato, o presidente, que via no escritor uma vocação de político, lhe acenou com apoio para uma carreira de parlamentar. Fez bem o assessor em preferir o cartório: nenhuma falta nos fez o deputado Waldomiro Autran Dourado. Já o escritor...


1) Sebastião Nunes: (Publicada em O Tempo, edição de 7/10/2012)
2) Humberto Werneck: (Publicado em O Estado de S. Paulo, edição de7/10/2012)

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