sábado, 5 de novembro de 2011

A GRILAGEM RECORDE

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A maior propriedade rural do mundo deixou de existir legalmente na
semana passada. O juiz Hugo Gama Filho, da 9ª vara da justiça federal
de Belém, mandou cancelar o registro imobiliário da Fazenda Curuá, que
consta dos assentamentos do cartório de Altamira, no Pará. O imóvel
foi inscrito nos livros de propriedade como tendo nada menos do que
4,7 milhões de hectares.

Seu suposto proprietário podia se considerar dono da 23ª maior
unidade federativa do Brasil, com tamanho superior ao dos Estados do
Rio de Janeiro, Alagoas, Sergipe e do Distrito Federal. Suas
pretensões poderiam ainda exceder essas dimensões. Através de outros
imóveis, pretendia alcançar uma área de 7 milhões de hectares, duas
vezes e meia o tamanho da Bélgica, país onde vivem mais de 10 milhões
de habitantes.

Como uma pessoa ? física ou jurídica ? consegue se apresentar como
detentor de uma área dessas proporções e se manter nessa condição por
tanto tempo, como aconteceu no caso da Fazenda Curuá?

Responder a esta pergunta de maneira satisfatória e eficaz pode
contribuir para fortalecer o primado da lei nos ?grotões? do país, as
distantes e geralmente abandonadas fronteiras nacionais. De forma
inversa, manter tal anomalia significa perpetuar o domínio da
violência e do respeito às regras da vida coletiva e ao superior
interesse público.

Em primeiro lugar porque o Estatuto da Terra, editado pelo primeiro
governo militar pós-1964, o do marechal Castelo Branco, continua em
vigor. Esse código agrário sobreviveu à Constituição de 1988 e se
revelou superior em confronto com as regras da Carta Magna. O
estatuto, com seu propósito de modernizar o campo brasileiro (mesmo
que de forma autoritária, à semelhança do que fez o general MacArthur
com o Japão ainda semi-feudal, derrotado pelos americanos na Segunda
Guerra Mundial), proíbe a constituição de propriedade rural com área
acima de 72 mil hectares (ou 600 vezes o maior módulo rural, o
destinado ao reflorestamento, com 120 hectares).

A Fazenda Curuá foi registrada com quase 60 vezes o limite legal.
Por que o cartorário legalizou a matrícula do imóvel com sua fé
pública, ele que é serventuário de justiça, sujeito à polêmica (e
questionada pelo Conselho Nacional de Justiça da ministra Eliana
Calmon) Corregedoria de Justiça do Estado?

A apropriação ilegal de terras públicas, fenômeno a que se dá a
qualificação de grilagem, é simples, embora de aparência complexa para
o não iniciado nos seus meandros. Ainda mais porque lendas são criadas
em torno da artimanha dos espertos e passam a ser apresentadas como
verdade.
Muita gente acredita que a expressão grilagem se deve à prática dos
fraudadores de colocar papéis para envelhecer artificialmente em
gavetas com grilos.

A verdade é menos engenhosa. A origem é romana e diz respeito ao
fato de que a terra usurpada serve para a especulação imobiliária e a
formação de latifúndios improdutivos. Tanta terra não cultivada acaba
servindo de pasto para grilos. Uma maneira de estigmatizar o roubo de
terras públicas de forma popularizada.

O espantoso, no caso da Fazenda Curuá, é que o golpe tenha se
mantido por tantos anos. A ação de cancelamento foi proposta em 1996
pelo Instituto de Terras do Pará. Apesar de ter provado que nenhum
título de propriedade havia na origem do imóvel, a justiça estadual
manteve o registro incólume, decidindo sempre contra o órgão público.
Até que o Ministério Público Federal e outros órgãos da União
conseguiram desaforar o processo para a justiça federal, que, afinal,
reconheceu a ilegalidade da propriedade e cancelou o registro.

Essa tramitação acidentada e pedregosa seria evitado se a justiça
do Pará tivesse realmente examinado as provas dos autos. Neles está
demonstrado que o uso das terras no rico vale do Xingu, onde está
sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte e agem com sofreguidão
madeireiros e fazendeiros, começou em 1924.

Moradores da região foram autorizados a explorar seringueiras e
castanheiras localizadas em terras públicas, através de concessões com
tempo determinado de vigência e para fim específico. Exaurida a
atividade extrativa vegetal, a área deixou de ter uso, mas algumas
pessoas decidiram inscrevê-la em seu nome. Como os cartórios não se
preocupavam com o rigor da iniciativa, até mesmo dívidas em jogo deram
causa à transmissão da inexistente propriedade de um detentor para
outro, formando cadeias sucessórias.

A lesão ao patrimônio público por causa dessas práticas ilícitas
permaneceu latente até que uma das maiores empreiteiras do país
colocou os olhos nesse mundo de águas, florestas, solos e animais. A
C. R. Almeida, criada no Paraná por um polêmico engenheiro, Cecílio do
Rego Almeida, que nasceu no próprio Pará, comprou uma firma de
Altamira por preço vil (sem sequer pagá-lo por inteiro).

No ativo da firma estavam as terras cobiçadas. Não conseguindo
regularizá-las pela via legal, por ser impossível, o empreiteiro
decidiu se apossar da área à base do fato consumado e passando por
cima de quem se colocasse no seu caminho. Montou uma pequena base no
local, contratou seguranças, seduziu os índios vizinhos e fez uso da
máquina pública que se amoldou à sua vontade. Os que resistiram à
grilagem foram levados às barras dos tribunais, que sempre decidiram
em favor do grileiro.

Os magistrados da justiça estadual não se sensibilizaram sequer
pela publicação do Livro Branco da Grilagem, editado pelo Ministério
da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, que não deixava dúvida sobre
a fraude praticada. Nem pelos resultados das comissões parlamentares
de inquérito instauradas em Belém e em Brasília. Ou pelas seguidas
manifestações de todas as instâncias do poder público, estadual e
federal. Enquanto exerceu sua jurisdição sobre o caso, a justiça do
Pará ficou ao lado do grileiro e de seus herdeiros, quando ele morreu,
em 2008.

Foi preciso que o processo chegasse à justiça federal para,
finalmente, 15 anos depois da propositura da ação pelo Iterpa,
secundado por outros agentes públicos, a situação se invertesse. Não é
ainda uma decisão definitiva. Os herdeiros da C. R. Almeida deverão
recorrer. Mas já sem o registro cartorial que lhes permitia manipular
terras como se fossem os donos do 22º maior Estado brasileiro.

Quem sabe, a partir de agora, a intensa grilagem, um dos males que
assola a Amazônia, não possa refluir?


POR LúCIO FLáVIO PINTO . 03.11.11 - 07H59

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