segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Andanças - Frederico Galante

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Quero dizer, sim, que foram estas andanças. De cerro mato, em torto de rio. Os encontros. Cada um é um, por certo, dizia minha comadre, que ainda diz, nos revelos, que as coisas são mais belas do que aparentam poder ser. Foi, que foi, nos meus sós. Cresceu tanto de modo terreno baldio antes de bosquear. Diz -se que a terra no onde a gente pisa tem forma de nos falar, basta ter ouvido. E que o rio do onde se bebe a água, traz a gente sempre de volta para o ele. Mas quando, que força desta monta eu mesmo senti, nos meus dentro e fora. Onde quando foi que, deitado, pensando em forma de desistir, senti, que prova é quem sabe olhar o fundo de um homem, a terra me abraçar e dizer "fique, meu filho, que aqui é lugar seu".


Entrementes, que bulia dizer algo de mim, forma era eu sabia não. Peguei do que conhecia, tendo passado por um demais dum vazio de ser. Qual o que um homem, que, dotado de sabedoria, decide é largar de tudo o que sabe para se preencher no novo. E foi assim. Só que o intento é danado, dói que ferra queimando, assusta e apavora. Qual um curuminzinho que ainda não sabe nadar e gente joga ele na água. Ai, que demora dum tanto em saber-se capaz! Passa por sufoco e alívio, no bater forte do coração, no pensar que vai morrer, no desespero, qual a beira dum cume bem alto, sem escora de apanhar e grito de socorrer.

Voltei a mim, modo como um homem, em broca de fome, vasculha terreno atrás de fruta e caça. Era deste tanto o caminho: vim de saída dum lugar belicoso, fumaçento, lotado de gente raivosa e dotada duma tristeza calada, crivada é mesmo lá nos recônditos da morada da alma. Em este lugar eu fazia morada, como que já não sabia mais quem morava dentro de quem, era eu nele ou ele em mim, visto que o modo de ser de um podia ser o modo de ser do outro. Em vista que, posso eu ter sido muitas vezes, eu mesmo, belicoso, fumaçento, lotado de gente. O me sentir neste lugar, eu mesmo conto: era que, de um modo meio nublado, meu coração doía era muito. Como o sumo de um homem se sentindo sozinho no meio de tanta gente!

Digo isto, sim, que o serviço de alguém nesta vida é achar o seu-caminho. Que quando as estradas estão prontas, de quem elas são? Os caminhos no onde eu morava, já eram picados. Quem tinha picado, eu não sabia não, e para onde ele queria ir, eu também não sabia. E, movido duma força, qual correnteza de rio, eu me movia nestas estradas, que não eram minhas e que me levavam para dentro delas, e eu parecia era estar sendo carregado e sem jeito de pôr os pés no chão.

Mas que, um dia, a vida tem seus modos, vi o olhar dum velho. Era de modo que ele tinha a vida nas mãos, que o mundo seu era dum tanto certo e nítido e apropriado, que até dono do tempo ele parecia que era. Os meus andares estavam por conta de construir estradas iguais a aquelas todas que eu via. Mas o olhar daquele velho me mostrou que ele tinha mesmo, de forma própria sua, criado um sereno jeito de se viver, forte como um terreno arado, semeado de tudo quanto é árvore e que resiste aos rasgos de água e seca que o céu faz o chão provar.

Sucede que eu meio que segui aquele velho. Segui sem tê-lo seguido, compreende? Nos meus pensamentos, cá de dentro. Primeiro segui foi era uma mulher, que fazia uma arte de um tal negócio de palhaça. Ai, que foi que vi dentro do olhar dela e da outra que também caminhava junta, que somando eram duas, e que também olhava igual, o mesmo jeito de caber no mundo. Mesmo jeito lá, daquele velho. E que as duas estavam eram caminhando dum jeito contrário do para onde eu ia. E elas me acenaram dizendo: vem com a gente! Fiz, que fui. Eu estava atrás do velho, como-que, era só dizer do sim.

Mas que, largar do tudo? Gente de próximo me diziam, como se fosse o acesso do insano, o dizer da bobéia, o azar do sem-juízo. Que eram olhares do fora, eu bem sabia, como do meu dentro não compreendiam. Quem era que sabia do velho? E da mulher-palhaça? E da minha dor de não caber naqueles caminhos? E quem sabia que os caminhos davam no sem-sentido? Sei que bem sabiam alguns com os quais eu convivia e que estavam eram contidos na brecha do tempo e desarrazoados do convívio, marcados por não serem compreendidos. Estes, digo-eu, mereciam vir comigo. Mas que, pelo não, sei que deixei um pouco de mim com eles.

Era bem que tinha começado, ou ainda não? Numa beira de estrada, esperamos um tal de um índio que nos levaria para o alto do rio, bem dentro da floresta. Esperamos cansados, três dias, em rede atada em cima de bosteiro, com os porcos cheirando e farejando rastro de gente e comida. Mas ficou do intento o sentido do tempo espichado, como o quê deveria ser de lugar como aquele, o velho me disse. A pequena aldeia, de tanta forma era grande, de se perder, com os jeitos deles de comerem, dormirem, falarem e amarem. Coisa de monta. Estas, que dariam livro. Em matéria de medicina, tinham o pajé e o sagrado de plantas do mato. Falavam com os mortos e limpavam o espírito das doenças, nas pajelanças. Tinha a uasca e o cambô. Tinha o canto que invadia o sono.

Foram mais muitas andanças. De entre quais, dos tantos feitos, se sabe ter registro, mas que mesmo eu deixo para quem quiser saber, procurar. O que de mim se faz saber, o velho me diz, é do crescido. Mesmo que o crescido do olhar. Mas que, sou o mesmo de ontem ou não. Quem me diz é quem me vê, não é como se diz? Sei que, de agora e do onde estou o mundo se passa no como eu vejo agora. Do passado, lembro pouco, vislumbros de desgosto. Mas que, no presente, não se tem permanências?

Se sabem, são poucos, do ofício que levo. Sou médico. Mas que, fui acrescido. Dum tanto de estas experiências com as mulheres-palhaça. Mas que, me transformei? Não sei mais, visto que, como eu disse, sei do que vejo agora. Sei dum tanto que me é pouco no sentido de compreender, mas tenho vontade de dizer. Mas que, digo: sinto é falta de ter não ter compromisso quando falo com alguém. Pois que, sempre preciso fazer alguma coisa, para motivo de acalentar. De tanto compromisso, me falta por tantas vezes é do natural, do vontadear. Posso eu não querer transcorrer prosa com fulano? Sei que, posso gostar pouco, mas digo menos ainda. Os modelos. De estradas já percorridas. Vou menos para o profundo. A prosa segue rasa, e vou tentando achar motivo de mergulho.

Não é que a gente, por vezes, perde a alma? Como se diz. Tem uns que vendem, pro dito. Quero também dizer mais coisa, a tempo. Tenho duas almas, como também soube de outro homem, e de outro e de outro - nem sei mais se todo mundo é assim! Mas, falo por mim. Uma delas, sei não, mais parece que vem como para proteger a outra. E esta alma é a que me veste para este negócio de médico. E a vila onde eu moro, conversa e lida é com esta alma. Ela é tal que tem jeito próprio de amar e desamar, de jeito de falar, dum modo assim meio letrado, sucinto e objetivo. Dum jeito meio sem-sentimento, que olha para as coisas mais de longe, que quer se afetar pouco pelas coisas. Dum jeito que fica assim meio de lado para as pessoas, pois sabe que, se deixar, "o pessoal monta em cima", como disse o caboclo.

Agora, tem a outra alma. Que dela digo pouco, pois que é ela quem vos fala agora. Sabe quem então me ouve. Ela mesma - essa alma -, que ouve o velho. Como que, não foi que vim até aqui? Casei com a mulher-palhaça. E vou ter uma filha com ela. Essa mesma alma que chora bem por dentro, abafada pela outra, em mais-de momentos. Chora às vezes à noite, escoando do travesseiro. Ela ri também, nuns tantos. E foi ela que acresceu, nestas andanças. Ela que-palhaça. O velho fala é com ela.

Essa alma faz modo de eu ficar aqui, agora, no sossego do mato, no encalço dos homens daqui, querendo ainda mais aprender. Como se faz a bajara, e se pesca de tarrafo. Como se trata desmentidura ou rasgadura. E como descer o caminho do rio.


Frederico Galante

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