quinta-feira, 16 de julho de 2015

Tomásia - MQ


 

 

Alforriada por destino de testamento, Tomásia, caneluda, beiços desmaiados, olhar comprido, vestindo corselete e cabeção, com os cabelos ornados na beleza e cheiro de ervas, margeava o Piri com a canada de óleo de copaíba.

Primeira vez, saía mercadejando para si mesma, sumariava beleza, ao mesmo tempo que não sabia o que fazer dali em diante, sentia falta de Nhá Belizária, das normas da casa onde tinha de tudo.

Olhava o guarda-escravos na feira, gente pronta para troca, compra e aluguel; os fugidos, cujos donos não apareciam, oferecidos a menos preço. Não sabia o que fazer com sua liberdade, serviço não havia para os forros, ainda mais para uma mulher sem beleza que ninguém cobiçava ter, sabia fazer o da casa e cozinha, nunca fora alugada para serviço nenhum. Sentia-se perdida naquela liberdade.

O benefício pegou Tomásia de surpresa, maior ainda foi a de receber do resto da família roupa nova, uns objetos de Nhá Belizária e uma canada de óleo pra vender. A família não deu intenção de ficar com seu serviço na paga de quase nada, tinham muitos escravos e com a morte da matriarca não havia muito o que fazer.    

Saiu do casarão uns dias depois do enterro; em lágrimas, foi se juntar aos mamelucos que viviam embrenhados no mato próximo da Pedreira do Guamá, na cabana de Nhanduca, seu conhecido desde criança - era filho de serviçais que passaram a vida quase toda servindo sua finada ama.

Tomásia perambulou muitos dias até vender o óleo de copaíba, nessa lida pelas ruas, ouvia coisas que não entendia, via o que tinha restado da cidade e o movimento de fardados em tudo que é lugar. Renovamento, recrutamento, perseguições, corpo de voluntários... iam ter serviço? Exibia a carta de alforria, esperava ser chamada todos os dias para o calçamento ou qualquer outro trabalho, procurando, batendo de casa em casa, só ouvia descaso.

Duca, como era mais conhecido, lidava com carvão, muitas cafucas produziam dia e noite, como os de sua raça, falava pouco, enquanto ia de cova em cova fazendo o abafo, ouvia tudo que Tomásia contava.

Preguiçando na rede entreliçada de tucum e caroá, sem demonstrar nenhum medo, apesar das perseguições aos mais graduados. Medo? Ele não. Lutou no segundo ataque e, assim mesmo, só carregando cartuchame junto com o irmão, passado numa descarga no alçapão do Arsenal, quando atreveu mais, na euforia da vitória.

Tomásia conversava sem parar, deixando o mestiço meio zonzo, falava da boa vida que tinha, que não queria ser mais uma curumba cruzando caminho com assassinos, cortadores de orelhas, toda hora tendo que mostrar a carta de alforria. Fazia munganga para a indiferença de Duca. Arrumava os cabelos, jeitosa, provocante e oferecida. Ele nem prestava atenção, era fidúcia à-toa.

O palhiço quase veio abaixo com o barulho da tropa espingardeando tudo, Duca sentiu duas picadas e a vida sumindo. Embaçado pela névoa nos olhos ainda viu, antes de restar; Tomásia,  esbagachada, segurando sua carta de  manumissão, passando de mão em mão, seviciada  numa dança macabra.      

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