domingo, 26 de abril de 2015

O escrivão - MQ


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No particular era esquisito, não deixava ninguém entrar no quarto, ele mesmo arrumava de manhã, a porta trazia sempre trancada e até o buraco da fechadura ele tampava, modo evitar o curioso.

Mas no trato com todos era cortês, passava despercebido o tempo todo no seu bom dia, boa tarde, boa noite, educado. Nunca vira ele comer, sempre não estava nessas horas. Era esquisito, não demorava mais de uma semana entre o chegar e o ir, não usava a casinha, banho nunca tomou. Quando chegava com os olhos fundos, aquela finura de bigode e as mãos enormes penduradas na sua magreza, formava um alvoroço na cozinha, longe das vistas de dona Laura que não admitia nenhuma forma de intimidade com os hóspedes desde que a filha fugiu com o turco Nassim da Chita. Era a tristeza dela desde um ano.

Quando seu Demotério chegava, nas duas ou três vezes que aparecia no ano, o mistério se instalava na pensão, em cochichos os comentários se espalhavam. Às vezes, até dona Laura, distraída, deixava escapar algum comentário.

 

 – Home esquisito.

 

A primeira vez que chegou à pensão, declarou como ofício ser escrivão, mas a bisbilhotice de Bibiano confirmou que não era na intendência que ele ia todo dia e sim na igreja e que lá se trancava com o padre na sacristia e ficava o tempo todo. Somente padre Anselmo saía vez ou outra, sempre com o semblante carregado.

No lugar todo, ninguém prestava atenção no seu Demotério tirando eu, Bibiano, dona Darvina e dona Laura. Sendo que elas se limitavam a reparar o esquisito dele só na pensão. Aquilo mexia tanto com nossa curiosidade que, de idéia misturada, eu mais Bibiano resolvemos espiar o que acontecia na sacristia. Tentamos o buraco da fechadura, as frestas da janela, tudo tapado. Bibiano era moleque espevitado, meio da minha idade mas com intenção de esperto, pensava miúdo e quis furar um buraco na parede de adobe. Quando ele estava com a pua na mão, seu Olegário, que ia passando, viu e deu a maior bronca nele.

De tarde, na pensão, fizemos o plano definitivo, o modo de espiar a sacristia era pelo telhado, a melhor hora, a de menos trabalho na pensão. Era fácil sair da presença de dona Laura, também havia a vantagem no sol quente da tarde formando ausências em volta da igreja.

Apenas com  sinal de olhar combinamos, é hoje. Subimos pelo muro, usando uma tábua para passar ao telhado,  retiramos duas telhas e entramos direto em cima da sacristia, pelo forro. Com medo do barulho delatar e a curiosidade cautelosa, descobrimos as frestas no forro, vimos os dois frente a frente, seu Demotério e o padre, sentados à mesa com um livro grande aberto entre os dois. No silêncio, o padre puxou o livro e começou a escrever. Seu Demotério com aquela voz grossa e na economia de palavras que já conhecíamos, interrompendo o padre, falou .

 

- Essa eu que levo. É alma ruim.

 

- Discordo, ele rezou, temeu a Deus e passou seis meses sem agravo a ninguém. Está redimindo. Se necessário, levo ao superior.

 

O susto no ouvido só não foi maior porque fui mudar a mão de apoio para a mesma tábua que Bibiano apoiava e ela não agüentou o peso de nós dois, despencamos. Bibiano no colo do seu Demotério e eu no do padre.

Bibiano não se lembrava de nada depois, eu, menos ainda. Seu Demotério cedo teve estrada. O padre não demonstrava nada quando nos via. Na pensão ninguém sentiu nossa falta, ninguém ralhou, parecia que tínhamos sonhado o mesmo sonho.

Seu Demotério nunca mais apareceu na pensão, o padre ficou doente e veio outro no lugar. Bibiano foi distanciando, arrumou um chapéu que nunca tirava da cabeça, foi esquisitando.

Um dia, passado tempo, no mudar um catre de lugar a pedido de dona Laura esbarrei sem querer em Bibiano. O chapéu dele caiu e pude ver o chavelho nascendo. Ele sorriu e veio como se fosse me abraçar, com a mão direita puxou uma pena branca que nascia nas minhas asas em formação e sorriu. E sorrimos...

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