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Bendito Benedicto, poeta bendito
Ateu que sou
Um dia acompanhei a procissão para viver seu poema
E vivi
Palavra a palavra, verso a verso e cada silêncio gritando no ar
Cantei na melodia instigante que freqüenta cada estrofe
E dancei na sensualidade do ritmo, argamassa milimetricamente assentando angústia e beleza
Nesse dia, Benedicto Bendito. Senti fé, fúria e muita esperança
Desde então, na corda do seu poema, minha alma se amarra e se liberta desesperadamente
Marcos Quinan
Discurso Sobre A Corda
Benedicto Monteiro
A corda não é como o cânhamo
a envira, a juta, a malva, a manilha
trançada torcida e retorcida
em mãos paradas
e círculo estático
formando muralha
A corda não é a espia áspera
puxada por guinchos
ou mãos enfiadas
em manoplas
A corda não é o cabo parado
enroscado como cobra
na defensa
do ancorado barco
A corda não é
o levitar de flâmulas
nem o flanar de velas
e estandartes
A corda não é o laço
o laço que enforca que prende
que cai no chifre ou no pescoço
do animal e extingue o espaço
que fecha a rede
e prende o peixe
que amarra o homem
e extirpa o tempo
A corda não é forca
ou uma simples arapuca
a corda não é o instrumento
de policiais fardados para a festa
Eles,
de mãos dadas
isolam o povo
defendem as autoridades
celebridades e poderes
A corda não é
a que puxa o barco para a terra
que arranca o peixe
de dentro d’agua
que lança no rio
a perfídia
da isca inerme
A corda
não é a proteção da Santa
em louvor de quem
se faz o Círio
a corda não é
uma defesa do andor
nem um circulo de giz
em torno da berlinda
A corda não é
apenas a ordem
a ordem do Bispo e do Vigário
a ordem do transito
a ordem do trajeto
a ordem da policia
Não é também o anteparo
que separa as classes
que marca a hierarquia
dos grupos e dos grupos
e que divide a procissão
em povo
na crença e na descrença
A corda não é a corda
em mãos alheias
não é a corda em mãos vazias
bamba e amorfa
nem quadrado nem hipotenusa
não é o trançado apenas
passando pelas mãos
das pessoas paradas
que reservam os lugares
para o préstito
A corda que se segura
enquanto a multidão parada
espera a largada do Círio
é circulo
parábola
ou elipse
que gira gira
em torno do Universo
É um dos centro
de qualquer galáxia
é sístole e diástole
maré vazante
ou maré montante
formando a correnteza
correnteza formando a pororoca
corrente de povo
em vibração de ondas
que nunca se completam
em permanência tensa
apenas pra pagar
talvez
uma promessa
muitas vezes
feita pelos outros
Pensa-se
que e só segurar a corda
acompanhar o Círio
e isso basta
Sim
também sabe-se
que é longo
muito longo o trajeto
E longo o tempo
que dura da Catedral
para a Basílica
de santuário a santuário
A primeira sensação
que toca
é a vibração do povo
porque o lugar que se encontra
pra segurar a corda
com as duas mãos já abstrai
a condição de individuo
Parado
ainda se pode notar o vazio
entre a corda e a Santa
Pode-se notar também
as autoridades
civis, militares e eclesiásticas
Elas,
tornam a Santa
ainda mais inacessível
Pode-se notar o carro
o coche
o andor da Santa
a berlinda
a berlinda linda
cheia da Santa e de flores
É só segurar a corda
e acompanhar o Círio
a promessa
fica sendo paga
tudo parece muito simples
muito simples
Mas
quando começam os cânticos
o badalar dos sinos
a explosão de foguetes
o agitar das bandeiras e estandartes
o povo em pé
como uma fera
acorda em fé e fúria
É o frêmito da multidão
iniciando a marcha
aí
a corda retesa-se
e propaga-se
como um facho
como um fio elétrico
em cobre e carne
em cores e carnes
em caras de mil caras
em faces de mil faces
Estabelece-Se
uma corrente humana
de mil e mil raios
mil frenéticos circuitos
em choques
que intercalam os cânticos
nos cânticos
juntam-se todos os murmúrios
em tropel
que multiplicam-se
em passos de mil passos
Na disputa pela corda
perde-se logo a integridade
de cada corpo como um todo
fica-se só com as mãos
e os braços
as pessoas juntas
juntas na corda
perdem o sexo
perdem o nexo
perdem a cor e alma
perdem a calma
perdem até a identidade
Perdem também
a capacidade física
que o corpo tem de ocupar
um único lugar no espaço
perdem o tempo
e o próprio espaço
Inaugura-se
uma nova relação física
e geométrica
entre os corpos vivos
a corda vira cordão umbilical
torna-se visceral
de gestos rítmicos
e orgânicos
os corpos constituem-se em massa
pura massa
O contacto das mãos
dos pés, dos braços
não é como num ônibus
num cinema
num comício
Não é como na luta
nem talvez
como na dança
A corda une e desune os corpos
ela desenha e redesenha a massa
Ela
exercita o ritmo
e aí
quando uma das mãos
arranca-se ou incrusta-se
arranca-se ou integra-se na corda
a corda fica hirta
e adquire a vida
a própria vida
Aí fica-se livre para levitar com os pés
ora de frente ora de lado
mãos e braços agarrados
mas o corpo flutuando
cada vez mais colado
a mão já é parte da corda
usa-se para andar
voar
nadar
e manter o corpo
sempre em marcha
Passa-se assim
a ser apenas flecha
disparada
pela corda retesada
e pelo arco
arco que é circulo e parábola
ou formas caprichosas
de um povo em transe-marcha
As hierarquias
exibem-se em grupos
que preenchem
e protegem o espaço
o espaço eclesial da berlinda
Proteção contra as ondas
que se quebram na muralha
muralha que é a própria corda-turba
Na corda
tudo se confunde
a corda-massa
a massa-corda
o corpo e a alma
Sente-se que a corda
não é apenas aquela que redobra o arco
a corda é a própria massa
a corda é o mar
o rio
os rios
uma terrível correnteza
de transe e êxtase
correnteza de povo
correnteza de onda
ondas de crentes
maresia de gentes
ondas e ondas fluindo
e refluindo no cortejo
prece via e rezada
em corpo e alma
andando, forcejando
brigando, sofrendo, suando
suor em reza andante
suor em reza ardente
suor quente
de gente se pegando
de gente se abraçando
se amassando
se rejeitando
em corpo e alma caminhando
prece corporal
de meditação em marcha
marcha forçada
em trancos e barrancos
em preços e tropeços
encontros e desencontros
topadas e empurrões
sobrossos e alvoroços
em marcha forçada
e livre caminhada
Reza, canto e dança
tudo aglomerado
procissão promíscua
e préstito tumulto
rito violento de gritar na praça
de correr no prado
de desembestar no campo
atravessando
e atravancando o espaço
Repleto templo
estádio e palco
transbordamento do asfalto
chão, ruas raízes
pista sombreada de mangueiras
e o ar alvoroçado
bem por baixo
A corda
é uma oração de pés e braços
de mãos seguras
em corpo-a-corpo e desespero
mil almas amarradas e libertas
unidas e desunidas em mil cores
mil caras de mil partes
mais de mil portes
mais de mil faces
mais de mil preces
mais de mil pedidos explodindo em êxtase
explodindo em olhos
em poros, pelos e apelos
das mãos, dos pés, dos braços
que se afastam
e que se abraçam
Dos gritos que se gritam
dos cânticos que se cantam
dos murmúrios
mil murmúrios lacinantes
e até pornofonias
gritadas e balbuciadas
imprecações
ditos litúrgicos e profanos
viscerais e onomatopaicos
A corda
é a única oração rezada com o corpo todo
com toda a força de uma luta
de uma farsa
de uma festa
de uma fé e de uma fuga
fé plena e primária
de uma rua às vezes verde
de uma cidade templo aberto
umbrais de edifícios e casas
chão de asfalto com mármore
rua como nave ou como átrio
colunas de mangueiras
nuvens como vitrais
pinturas de galhos e afrescos
rua livre e aberta
Basílica e Catedral
A corda é um puxirum
um mutirão
uma greve e um assalto
um assalto-súplica
um assalto-reza
uma reza-luta
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sábado, 18 de junho de 2011
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