quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Embriagados


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A conversa se arrastou por mais de duas horas. Mágoas, demandas, traições e ressentimentos. Era um rascunho se desenhando.

Justificavam o que parecia justo. Um afirmava o amor o outro a paixão e diziam isso claramente. Os dois estavam mentindo.

Metáforas tiraram a afiação das palavras. Deslealdades desvendadas e a falta de limites foram imputadas a razões egoístas, como coisa humana convivendo.

Os melhores momentos não eram parte daquele ato.

O que um idealizou do outro não estava mais no jeito dos olhos, tinha se perdido em momentos diferentes e fazia muita falta.

Para um, viver tudo que pudesse. Havia muita vida em si. Para o outro, o melhor do que tivesse, havia muita morte em si.

Na mesa, a toalha manchada de molho, a bebida que não embebedava. Parecia um momento comum.

Quantidade e qualidade provavam da mesma perda, a verdade dizia suas mentiras e a mentira suas verdades.

Em volta, na outra mesa, a decepção começava a beber com o ódio; o perdão pedia a conta e tentava retirar o amor e a paixão embriagados do local.


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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Cor da terra

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Cor de terra sobrepondo as gradações como se quisesse ter uma luminosidade propositadamente opaca.

Ficava na parede fronteiriça à porta, de maneira que, quem entrasse, não via imediatamente.

Ela viu, admirou e não conseguiu mais tirar os olhos. Comprou e levou para casa.

Alguns meses se passaram em muitas tentativas de achar o lugar ideal para pendurá-lo. Cada parede que experimentava, sentia que não era ali, parecia faltar alguma coisa. Em poucos dias ele se entortava ou amanhecia de cabeça para baixo muitas vezes a assinatura indecifrável mudava de lugar; não era loucura, ela media e comprovava. Um mistério.

Voltou à galeria, queria saber mais, qual a história daquele quadro? Quem era o artista?

 

- Não sabemos nada dele, quando compramos o negócio, já o encontramos na parede pendurado, ninguém sabe o nome do pintor - responderam.

Foi num dos quartos desocupados da casa que acabou sendo pendurado; quando aproximou o quadro da parede, a impressão que teve foi de um puxão para um encaixe perfeito. Ali ficou.

Para aquele quarto ela acabou transferindo seus afazeres, mudando seu cotidiano. Passava horas olhando a pintura.

Todos os dias aqueles tons alteravam a paisagem retratada, detalhes desapareciam ou iam se trocando, se rearranjando na textura, nas camadas de cores e sombreados.

Cada dia ela se trancava mais até que resolveu não sair mais dali.

Quando deram por sua falta e, ao arrombarem a porta, não a encontraram. Sentiram apenas um cheiro de orvalho recendendo e duas mãos saindo da paisagem cor da terra.

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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

zaldivar

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para otávio zaldivar arantes

 
na solidão

do sonho

o tijolo

a cena

implodiu

na rua
 

monólogo

perdido

de solidão

diálogo

esquecido

nos sonhos
 

tijolos

inacabados
 

cena

apagada

no espetáculo

de sonhar


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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Último encontro


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A revelação não o surpreendeu. Suspeitava desde muito tempo. Na infância, na juventude e agora ali, ouvindo.

Sempre aquela coisa estranha. Espécie de comichão no corpo, um pensamento saliente tomando conta dos sentidos. A atenção redobrava. O raciocínio formulado com muita rapidez, quase aviltava suas interlocutoras.

Ela era bela e sofisticada. Curvava o olhar enquanto falava parecendo querer, confrontada com alguma razão, ser interrompida. Ele não evitava a conversa, disfarçava, não contracenava, ouvia, só ouvia.

A revelação veio entre a intenção das palavras. Claro como aquela tarde quente, estranha como as probabilidades do seu corpo. Ele era um demônio...

Sim, um demônio. Sentia, sentia ser.

Foi como um rastilho de pólvora se acendendo. Seu pensamento correu o passado todo. Era mesmo, lembrava-se de cada momento, de cada transmudação ao longo da vida.

Queria rir, gargalhar, mas se conteve. Impassível, ouviu como uma transgressão confessada, como um desejo de remissão impresso no tom da voz. Viu nos olhos molhados nostalgia, mas nenhum arrependimento.

O esforço que ela fazia para inventar uma história de culpa já não tinha importância. Era só um espectador. A beleza ele já havia roubado. O arbítrio da fé não o interessava. Apenas ergueu o copo.

Em silêncio, brindou ao pecado que a colocara inteira no seu inferno particular.

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