quinta-feira, 30 de abril de 2015

Dentro do poeta - MQ


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Era só o poeta envelhecido com seus demônios, cansado, que voltava como se fosse possível voltar com todos eles. Deixar as cicatrizes cerzidas com o fio dos caminhos e se lembrar de ser são. Era só o poeta, em metáforas; de alma e corpo, peregrino pela vida, juntando pedaços desde que partira.

Era só o poeta e seus demônios que calavam versos e secavam lágrimas. Ele voltava à origem naquela madrugada de casas adormecidas e ruas silenciosas.

O dia amanhecia no quintal, colorindo os rastros que ela deixava quando caminhava para o portão. Parecia  adivinhar quem chegava. Naquele abraço amoroso recebeu suas lonjuras. E eram tantas! Ele olhava para a mãe e as palavras pulavam do pensamento, como se ela as dissesse.

 

sou a mulher

que finda, ereta

e insubmissa,

a última etapa da vida

 

sou a mulher

que chora,

pelos cantos,

escondida,

o tempo que só

dentro de mim ficou

 

sou a mulher

que carrega no ventre

o fim latejando,

minha primeira gravidez

e meu derradeiro parto

 

sou a mulher

ereta e insubmissa,

que desde nascida

finda

 

Olhava seu pai, enrolando o cigarro para lhe dar com as mãos em calos e perdão, as palavras falando em silêncio, como se ele as dissesse.

 

do eito

onde capino o dia,

confiro meu verso,

pari o poeta

 

Da porta dos fundos da casa avistava os caminhos, espalhados no lugar da infância, iguais e distantes. Sem se dar conta, os passos levavam para a Meia Légua, guardada pelo buriti solitário, farfalhando.

 

sina de ser tão, sertão

 

posto o horizonte no dia,

linha estendida na imensidão,

caminho de tropas passando

 

vento balança copa e tronco

ensinando dançar,

ninho de juriti,

folha nova despertando,

cacho, coco, capivaras, bem-te-vis

chuva fina na terra fértil

fecunda a raiz lançada aqui

 

passeia o sol no compasso

traça a luz, projeta horas

 

ser tão, sertão

nos rastos das boiadas

seguindo

lusco-fusco, vaga-lumes

solidão

 

noite que a lua segue em compasso,

dança

ermo de cerrado, sinfonia,

solo de pirilampos

escutado sob

o silêncio das estrelas

 

o tempo são marcos

de ser tão, sertão,

na terra

onde folhas viram asas

do meu tronco buriti

 

Ouvia dentro a voz, era o poeta ouvindo, recebendo os versos, se calando em versos, ouvindo o convite do rio.

 

molha os pés

e as mãos em calos

nas águas da infância,

sou rio ponte,

rio pedra,

rio fonte,

 

sou caminho perdido

na curva do tempo

 

sou rio indo, ardendo

queimando paixões

 

sou rio ido

angustiado

em ser

 

rio velho,

jazindo,

indo, indo...

 

sou rio pedra,

rio ponte,

rio fonte,

indo...

Indo...

 

Voltava pelo trieiro, sem versos, sem paz. Pejado de demônios perquirindo, encontrando, um a um, quem já levara por dentro pelas estradas.

 

ainda somos as pessoas que ardem

e se esvaem

em procuras,

tecendo em sonhos,

encontros e despedidas,

a solidão de nossas

pequenas histórias

 

Passava pela porta e via a colcha de retalhos pendurada na cerca daquela casa simples que ela sempre morou, balançando no vento as palavras.

 

retalhos de vida,

dispostos juntos,

são das cores alegria

e tristeza

 

retalhos juntos,

dispostos na vida,

formam as cores da chegada

e da partida

 

retalhos dispostos,

na vida juntos,

cor das lembranças

a das saudades

 

retalhos de vida,

dispostos juntos,

na cor da labuta

tecendo a colcha de retalhos

com que cobres

tua angústia

 

Quando ele a viu, o olhar não acreditou, o corpo não acreditou, seus demônios não acreditaram. O tempo lhe caíra bem, lhe dera definitiva beleza e espera. 

 

sê bem-vindo,

amado meu,

inesperado

mas bem-vindo,

amado meu

 

não te preparei versos e luares,

nem os braços

em abraços,

amado meu

 

mas sê muito bem-vindo,

amado meu,

seguiste os vaga-lumes,

não foi? amado meu

 

te pedia para voltar

depois de cada entardecer,

amado meu,

no piscar de cada estrela,

amado meu,

pedia aos vaga-lumes

que as imitassem sem parar

até te encontrar,

amado meu

 

Ele mal acreditava. Ela estava ali na sua frente, não escondida nos caminhos, mas ali, amor igual, restando igual, esperando igual, no tempo desigual, em lamento.

 

parte arrancada,

distante,

dilacerada,

mas que lateja e arde

 

parte e universo

 

história esmaecida

nas lembranças,

levada na poeira das estrelas

 

tempo feitor

reunindo pedaços

dentro de nós

 

corpos já puídos pelo tempo,

asseverando o amor

dentro de nós

 

miríade do que já fomos,

mutilada,

que ainda sinto

por dentro de mim

 

Havia tanto amor naquele abraço, o cheiro dela era tão ela, não havia demônios ali. Se doava.

 

entrego

aos teus olhos

os meus em lágrimas,

nesse momento maior de amor,

 

te pertenço por inteiro

na lucidez

desse silêncio

 

com teu rosto rente ao meu

e minhas mãos

sem mágoa

te falo do meu

amor definitivo

na poesia

dessas lágrimas,

que teus olhos

também conhecem

 

plenitude

maior do amor,

instante

maior do amor

em cristais

no meu pensamento

 

Ele que voltara apenas para restar ali ouvia cada palavra, com ouvidos de procura misturados na poeira, vagando.

 

queria te dar a aurora

se despindo na manhã

e orvalhar os caminhos

dos teus gestos pelo dia,

queria te dar momentos

que jamais tivemos

e todos os sonhos

que ainda não sonhei,

queria te dar mais,

tanto mais,

nas palavras usadas

em desbotadas metáforas,

queria te dar muito mais

do meu amor

que não envelhece,

mesmo esperando

só dentro de mim

 

O poeta não se pertencia, havia a chusma de demônios impelindo. Acreditava voltar, acreditava ficar, acreditava amá-la depois de tanto tempo urdindo distâncias. Não conhecia tanto a alma que amava. Seus pensamentos transpareciam e ouviam os versos.

 

por não te conhecer tanto

és perfeito dentro de mim,

assim, idealizo, sonho

e sofro a tua ausência

 

alma que me ama

 

minha alma também te ama

mas está, ainda, aprisionada

no meu corpo

que todos os dias sente saudades

do teu corpo e da tua alma

 

alma que me ama

 

prisioneira como a minha,

vivendo a ilusão de ser só alma,

num corpo que não conheço tanto

mas que é perfeito dentro de mim

 

alma que me ama

 

num dia nem vestígios

do meu corpo haverá

 

um dia quando só alma for,

no espaço infinito das almas,

ainda, doerá a lembrança

de tê-lo tido, sem tê-lo

de tê-lo esquecido, sem esquecê-lo

 

Era o poeta que só ouvia versos, só calava as palavras dentro de si. Era o poeta que voltava com o corpo cheio de demônios e olhava de soslaio a intenção aprisionada na ponta da estrada, chamando novamente.

Ela olhou para a direção do seu olhar e enxergou, triste, o lugar de ir, de só ir. E afirmou em lamento.

 

foi num lampejo de

angústia que Deus,

injusto,

se há,

nos formou um ser só,

deu solitário limite

na enorme ternura

 

em outro lampejo

 permitiu, ainda,

a chama acesa

 

injusto,

se há,

reluta severo

em de verdade nos criar

 

embaralha o tempo

na dor que

recende dos nossos corpos

e num gesto de

generosidade

nos dá referências,

pessoas amadas

e nega,

 na sua angústia,

 que fossem

para nós dois as mesmas

 

se há,

injusto que é,

quem sabe num dia

de muita melancolia

nos permita alma

e carne se pertencer

 

se tarde for,

injusto,

se há

 

permitirá

nos contentarmos

com a lembrança

do que nunca fomos

 

Despedia-se do poeta e ele se despedia dela, a estrada o retinha, lugar de ziguezaguear com seus demônios.

Os versos chegavam doloridos de volta ao ventre, inéditos, sem vida.

Ele restou em litígio com sua chusma de demônios pela estrada a fora.

Mas ela cantava o definitivo canto.

 

vais durando em mim sempre

e sempre durarás em mim

pois tenho zelo em pertencer-te

e sinto a cada quadra do tempo

a doce saudade de ter-te

 

o tempo curva meu corpo

e vais durando,

apura minha sensibilidade

e vais durando

 

porque sempre

é quando,

estás em mim sempre

 

Tantos versos chorando nas palavras não ditas, só dentro, palavras tristes. Lágrimas que salgavam a boca dos demônios, que cantavam em coro pelo caminho, mesmo quando calavam dentro do poeta sem versos.

 

a tristeza

escorria no olhar

 

não escutavas

nada ao teu redor

 

a sinfonia do entardecer

deslumbrava

colorida

 

 tristeza

escorria dos ouvidos

 

 não vias

nada ao teu redor

 

a tristeza continha

teu corpo

para não escorrer

pelo chão

como lágrimas



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