terça-feira, 30 de abril de 2013

Ojero




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Gostar eu gostava, não só do velho mas da lida toda, dos companheiros, o saber dos caminhos, vida de tropa, gostava sim. Importava com carga muita não, passar nos facões e nos serrotes era pior, mas muito, não. Às vezes, as bruacas até rangiam no esforço do descer e subir. Comer, só no bornal, o milho que o velho escolhia para dar trato do de melhor. Assim era o cuidado com a pisadura, na hora de pôr as peias.
Nos caminhos, gostava mais do trato, zelo de Baldino colocar a cangalha no lombo, encabrestar, arrochar a cincha, abotoar o peitoral, descer a retranca e enlaçar as alças no cabeçote dos alções. Arrumar os sacos, bornais, surrões. Fazer os contrapesos e amarrar o ligal no arrocho, com o cambito, e soltar o cargueiro. Depois amarrar os guizos nos peitorais e cabeçadas.
O ruim era o carrego, quando o velho deixava por conta do empregado do seu Vieira. Muito desmazelado aquele sujeito, quantas vezes a carga caiu com o cambito frouxo. E a vez que ele deixou cair ali mesmo uma lata de querosene, e derramou. Quase pôs fogo em tudo, porque o passante estava riscando a binga para acender o cigarro de palha.
O descarrego, esse, Baldino nunca deixava ninguém pôr a mão, por causa do equilíbrio da carga. Quando parávamos no pouso, depois do descarrego, ele escovava um por um, naquele jeito dele de pôr reparo num trote a mais, na guia descuidada ou num descer facão mais brusco.
Eu só desacorçoava quando aparecia um corte para varar. Uma a uma no trieiro e não rendia o caminhar, parecia que estava passando de novo no mesmo lugar. Agora, quando chegava no tope do morro, principalmente no Cobertão, dava gosto enxergar tudo dali de cima. O velho também gostava desse lugar, sempre o preferido do pouso.
Trote era o que ele mais punha reparo.
- Só serve prá cansá o animá e num omenta a paga. Dizia.

Nesse ponto tinha razão. Só o Pacu achava que não, gostava dum trote. Quando distraía e punha marcha, me passava na cabeçada chacoalhando os guizos mas, quando percebia, emparelhava comigo, no respeito.
Gostava muito não, quando Baldino negociava com pólvora e carga muita, ainda mais que o palheiro num saía da sua boca hora nenhuma. Ou então quando tinha muito negócio com couro, aquilo fedia demais.
Minha preferência era quando carregava fumo com contrapeso de rapadura. O cheiro bom, o peso distribuído melhor e não tinha perigo.
Nos pousos, enquanto Baldino negociava ou contava as notícias da política para os figurões, cada um com a montaria mais bonita que o outro, era o de bom, cada mulinha mais formosa. Aquelas arreatas, muito bem cuidadas, uma boniteza. A companheirada gostava da alegria dos olhos.
Mas meu querer mesmo estava ali, do meu lado, e ela era bonita demais. Nova, castanha, o pêlo brilhava de longe, e os olhos, no jeito de me olhar, minhas pernas bambeavam. Vaidosa na medida da sua boniteza; sabia enroscar seu pescoço no meu, na demonstração de bem-querença. Tão alegre e vezes tão triste.
Quando conheci novinha demais, mesmo assim, pus o olho nela e fui criando, no acompanho dela crescer, o amor todo.
Baldino punha muito gosto em agregar ela na mulada, de vez em quando me falava no ouvido, enquanto escovava meu pescoço:
- Um dia nóis agrega ela, Ojero.

O dia chegou, e nesse dia foi tristeza demais que chegou junto. Foi dela que Joaquim, melhor amigo de Baldino, caiu. Foram suas patas que resvalaram nas pedras do Vau do Lajeado, derrubando ele.
Nunca vi tanta tristeza como a de Borborema, naquele dia, puxando a carroça de parelha comigo. Desconsolo demais, nem prestou atenção quando Baldino fez a paga para levá-la.
Parecia até, que no enterrar Joaquim, também dela um pedaço ia junto.
Seguindo caminho, ela do meu lado, vez em quando enroscava o pescoço no meu, olhar escorrendo tristeza. No choro dela.
Todas as vezes que a tropa chegava no pouso do Braço, Baldino me desencangalhava primeiro, depois Borborema, abria a porteira e nos soltava no rumo do cemitério, onde passávamos horas, ela meio que chorando. Depois, a volta, bem juntinhos num silêncio só.
Borborema ao meu lado, guiando comigo a mulada no tempo passando. Às vezes, a alegria está toda nela, como antes. Em outras, a tristeza toma conta. Quando a alegria vem, Baldino percebe e fala no meu ouvido.

- Hoje Joaquim tá aqui cum nóis.










MQ



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segunda-feira, 29 de abril de 2013

Perpétua




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Ela cardava o algodão ensimesmada, triste e calada, aquele choro miúdo para dentro. Lembrava Altino, Eleonora e o pai, sentia tristeza sentada no canto, nem o gato Beleu, brincando com os novelos, lhe tirava dos pensamentos.
Pensava no para trás da vida, lembrava do dia que Altino chegou, empoeirado, arrastando a perna quebrada e ela o socorrera. Lembrava daquele olhar que lhe dera, do prazer de rasgar a perna da calça, os dois sozinhos na casa inteira, no dia inteiro. O pai mais Eleonora chegando de noitinha com trovejo e uma chuva miúda, perguntando quem era estendido no catre da sala, aquela brabeza de sempre, condenando tudo que ela fazia.
O interesse de Beleu, passando de um lado para o outro, encostando na perna sã de Altino.
Doía recordar, a invídia da irmã manifestada na hora que o moço acordou, o interesse do pai quando soube ser Altino sobrinho do seu Rubilão da Malhada, fazendeiro próspero e conhecido de todos, a melhor terra do lado de Minas. Antevia ele casamento, não dela, sempre restando, mas de Eleonora. Acabava assim, com o encanto de ter sido notada por Altino.
Lembrava da conversa na cozinha, sentados no banco rente ao fogão abrandando o frio que a chuva trouxera, e daquele vento esparramando carusma na toalha que Eleonora, exibindo as prendas, punha na mesa. O olhar perdido e a voz dele explicando o tombo na grota e o desnorteio do rumo. Quando encontrando o dela, era como se a chamasse de anjo.
Cardava devagar aquelas lembranças, misturando-as ao algodão de primeira apanha, nas lágrimas escondidas no olhar distante, sentia a inveja da irmã e o desprezo do pai, ainda ali, naquela casa vazia, sentindo ainda o cheiro dele. Ouvia sua voz, no longínquo do pensamento, pedir a mão de Eleonora. Quanta vontade teve de chorar na hora, e mais ainda, quando sozinha no quarto.
Ajudando preparar a viagem do pai e da irmã para casa dele em Minas. Vontade de chorar, mas só o fez por dentro. Sozinha aqueles meses todos e depois quando convivia com eles casados, morando naquela casa tão sua, tão só sua, vontade de chorar.
Lembrava de esforçar naturalidade quando via chamego entre os dois. Quando começou a pensar em fazer, não lembrava o momento exato, ficou perdido na memória, resvalando entre o dia em que os vira nus, se pertencendo, e quando eles e o pai a apartara duma conversa a respeito da lida na fazenda.
Lembrava o escorralho da caneca de alumínio que ela limpou bem antes de devolver ao criado no quarto do pai. Ele não devia nem ter sentido o gosto do veneno ao tomar de uma vez a água que sempre levava à noite para o quarto. Para Eleonora e o marido ele morrera de repente e assim foi enterrado.
Foi o tempo mais difícil e que ela lembrava mais fácil, quando os três ficaram sós e ela se submetia, quase com servidão, aos mandos da irmã que não falava em dividir as terras, igual o pai fez quando a mãe morreu. Sempre deserdada de carinho. Às vezes, Altino reparava e tentava bondade com ela. Quase iludida, teve dúvidas no que planejou fazer, mas fez.
Foi numa noite enluarada, daquelas que dá gosto ver as estrelas recamadas no céu. Foram dormir tarde. Perpétua fingiu passar mal e pediu para irmã ficar no quarto com ela naquela noite. Por insistência de Altino, Eleonora concordou.
Na madrugada, o travesseiro no rosto da irmã e o corte na garganta não permitiu nenhum grito. No raiar do dia, pouco se ouviu ele gritar enquanto debatia com o azeite fervendo ouvido a dentro, escorrendo, e ela falando...
– Adeus meu amor.

Era tão exato o calor queimando os dois ali no pensamento e tudo que deles tinha o cheiro. Seu olhar, ainda, refletia aquelas chamas distantes. Enterrados num canteiro de cravos nunca cuidado, esquecido, debaixo de sua janela, sempre fechada.
Ela cardava o algodão ensimesmada, triste e calada. Cardava no canto daquela sala antiga, suas lembranças, dor sem dor, esperando chegar alguém. Olhava distante Beleu brincar com o mosquito na soleira da porta, esperando naquele mês chegar alguém.


MQ


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domingo, 28 de abril de 2013

Baltazar de Das Dores





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Vagava na chapada, havia mais de vinte anos, conhecia ela como a palma das mãos, caminho, atalhos, jeito de chegar. Era Baltazar. Uns diziam que era descendente de ciganos, outros que era dali mesmo. O certo é que cruzava aquelas terras, trabalhando ora aqui ora ali, sempre muito considerado por todos. Da família diziam que só restava ele.

- Seu Baltazar, apeia.

- Cumo vai dona Filó? Bom dia, seu Aniba.

- Dia. Chegô na hora, Filó cabô de passá um café. Achegue.

- Cum gosto, seu Aniba, cum muito gosto.

Ali mesmo, entre gole e prosa, tratou do serviço. Na preferência de Baltazar, trabalhar ali era o melhor. Fosse pela paga, fosse pelo trato, além de poder pôr os olhos em Das Dores, que quanto mais passada do tempo, mais boniteza acumulava. Em sendo filha única de seu Aniba e dona Filó, ficava no vantajoso da herança, mas isso não era cobiça de Baltazar.
Das Dores, moça donzela, jeito de menina ainda, apesar do maduro nos anos, vivia na conformação de solteira vida afora. Bonita, isso sim, ela era: o rosto, os olhos claros, os cabelos lisos sempre presos para trás, e o corpo escondido naquele mesmo jeito de se vestir. Baltazar não tirava a atenção dela. Coisa que seu Aniba logo avaliou nele foi a bem querença escapulindo nos olhos, nessas horas.
- Seu Baltazar, já pensô tomá sussego na vida, pará num canto, radicá?

- Dô prá isso não seu Aniba, ponho custumação in lugá ninhum. Ponho gosto é nos caminho, na istrada.

- I’eu mais Filó tamo ficano véio, nóis só tem Das Dores e a terrinha. Se nóis fartá é ela só no mundo.

Numa pausa.

- Faço cumbinação, cunheço ocê prá mais de vinte ano, ponho reparo nos oiá docêis dois, fereço a mão dela e tudo que carecê.

- Na honra fico seu Aniba, no acanho de respostá tamém.

A conversa acabou ali. No outro dia, nem a paga Baltazar esperou. Ganhou estrada.

Dois anos passados.

Das Dores estendia as roupas na frente da casa para quarar, quando avistou no longe o cavaleiro, caminhou até o batente da porteira, enxugando as mãos no avental. Distinguiu Baltazar ainda no longe. Seu coração disparou; sem pensar muito, abriu a porteira.

- Cumo vai, Das Dores?

- No custumá, em como Deus qué.

- E seu Aniba, vim tê uma prosa mais ele.

- Foi na rua cum a mãe, apeia.

Baltazar desceu do cavalo, levou o animal para o cocho e sentou na soleira da porta.

- Nem fiz armoço ainda. Se quisé merendá, a mãe dexô quitanda feita. Vô passá um café.

- Carece não, Das Dores. Gradeço. Sabe do assunto qui quero pôr trato cum seu pai?

- Magino, mania do pai querê rumá casamento de cumbinação, mais quero não, quero só se for de bem querê.

Baltazar ficou surpreso e envergonhado, disfarçou o quanto pôde, tentou mudar o rumo da conversa, mas ela insistiu.

- Foi pur isso que ocê sumiu, igual fugino, foi o pai?

- Cumbinação foi não, ele só falô que punha gosto.

- E ocê põe?

Ele ficou um bom tempo pensativo, meio encabulado, sem saber o que fazer com o chapéu que tinha nas mãos. Mas respondeu balançando a cabeça afirmativamente.
Das Dores abriu um sorriso e falou bem baixinho, enquanto olhava Baltazar bem nos olhos.
- Brigado Santo Antônio.

Ele, por sua vez, sentiu o coração bater mais depressa. Nunca tinha sido olhado daquele jeito antes. Conhecia o afeto de muitas pessoas encontradas vida afora por onde seu caminho levava, nada como o que Das Dores demonstrou com aquele olhar. Os dois parados no meio da cozinha, água fervendo no fogo, nem notaram a chegada de seu Aniba e dona Filó que, da porta, os olhavam. Seu Aniba tossiu e pôs o quebrar naquele momento.

- Cumo vai Baltazar. Veio recebê a paga?

- Vim foi pôr trato de casamento cum Das Dores, se ainda é do agrado do sinhor e dela.

- É do seu agrado, minha fia?

Ela, baixando o olhar, sem graça:

- Se for do seu, pai, do meu é.

- Vamo cunversá lá no terrero, seu Baltazar.

Estranheza de Das Dores, que conversa seria essa? O pai vivia tentando arranjar marido para ela.
Tomando o rumo da cerca, seu Aniba foi pensando na conversa que tivera com ele, no seu sumiço de dois anos, e em toda aquela situação repentina, agora.

- É de seu querê mesmo? Tá resorvido tomá sussego? Puis reparo no que aconteceu dois ano atráis.

- O sinhor sabe da minha andança, que sô respeitadô; nesses dois ano garrei a pensá na vida. Das Dores tá no meu pensá faiz muito. Fugi no acanho de num sabê do gostá dela. Agora sei.

O casamento se realizou meses depois. Os dois viveram o primeiro ano sem filhos; no segundo, nasceu o primeiro e, daí em diante, foi um atrás do outro, para alegria de Das Dores. No todo, doze.
Baltazar tomou amor pela lida e, uma vez por ano, levava o gado para vender no curtume. Demorava mais que o necessário, mas era do saber de Das Dores que ele corria a chapada toda matando a saudade das gentes e dos lugares. Mas quando voltava, era como no dia em que pediu sua mão. Tocava o berrante no longe e chegava sempre cantando.
quando ando no sertão
careceno pricisão
eito prá invergá o corpo
sei que num farta não
quem me é de valia
ladainha creio
rezei tantas
esqueço não

Das Dores largava tudo o que estivesse fazendo e o esperava com a porteira aberta e a quantia de amor que cabia no seu olhar.



MQ

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sábado, 27 de abril de 2013

Atalho




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Monjolo cascava o arroz, Zefinha catava feijão. Na roça, Dito Véio esfriava os calos da mão. O cabo apontado para o céu, encostado no peito, e o corte da enxada virado para dentro, onde ele limpava a terra do solado da butina.
A roça ficava de jeito que, do seu eito, ele avistava a janela da cozinha, enxergando Zefinha de longe. O pensamento distinguia ela, mais longe ainda, na formação das roças, na puxada do rego d’água, na doença do pai, e depois da mãe. Ia lembrando da menina nova sempre ao lado dele, pedindo garupa e ajudando tirar leite no curral. Lembrava até do dia que ela nasceu. E agora, avistando Zefinha na janela, catando o feijão, remoía por dentro o desassossego de ver ela tão moça, bonita e sozinha no mundo, mercê dos espertos. Ele foi o único que ficou, mesmo sem a paga, no esquecer dos anos.
Distraído nos pensamentos só viu quando já estava rodeado daqueles cavaleiros.
- Quem é seu patrão, nego véio?

Respondeu meio assustado levando eles até a casa onde Zefinha, já sem avental, esperava na porta.

- Que deseja, seu moço? – perguntou Zefinha.

- Tamo procurano dois preso fugido. Um tá atirado na perna, o outro é preto igual esse véio, nóis num sabe quantos tiro pegô. O rumo deles era esse, a moça viu gente estranha passá?

- Passou ninguém não.

Mal deram água aos cavalos e ganharam estrada.

- Dito, que será que os dois fizeram?

- Sabe lá minha minina, pelo tamanho da tropa, coisa muito ruim.

No decorrer de dois dias, Zefinha começou a dar falta dos indez que ela deixava nos ninhos das galinhas poedeiras.

- Dito, as galinhas num tão pono, que será que foi?

- Sei não, minha minina, será algum gambá? Vou pôr reparo.

Passou Dito Véio duas noites seguidas vigiando e nada viu. As galinhas não botavam mais. Aí começaram a sumir coisas: primeiro, foi a colcha de algodão da estima de Zefinha, depois uma panela de barro, um pedaço de toucinho do varal. Outro dia foi o facão do Dito.
Os dois viviam assustados o dia inteiro, os afazeres, às vezes, entretinha. Mas logo vinha aquele desconfio de tudo que mexia no redor da casa.
Estando Dito Véio na limpa da roça, com o sentido posto no em roda, viu a sombra no lado do paiol. Foi lá que pegou os dois, nem precisou levantar a arma, estavam caídos no chão, sujos, fedendo e magros de dar dó. O que estava atirado ardia em febre, o lugar do tiro inchado e cheio de pus. O outro não dava conta de carregar o companheiro, ia deixar ele ali e seguir só.
Zefinha atrás de Dito já foi dando as ordens.

- Vamos levá eles prá dentro.

Dito carregou o atirado e Zefinha deu sustento no apoio do outro, que mal dava conta de andar. Deitou o são, deu água, comida, enquanto Dito banhou, de bacia a perna do ferido já estendido no catre, delirando. Zefinha apanhou umas folhas de fumo no terreiro e preparou um emplastro de urina com fumo e pôs na ferida; deu chá de mamacadela com palha de alho, o homem foi sossegando devagar até dormir sereno. Seu companheiro não disse uma palavra, caiu logo no sono. Ela ficou a noite toda na cabeceira do ferido vigiando a febre dele, trocando o emplastro. Essa labuta durou dois dias. Enquanto ela cuidava, ia ouvindo a história da boca do de nome Zaqueu.

- Trabaio p’ro seu Cristino, ele é da pulítica lá da Bahia; prendero nóis ano passado, nóis num matô nem robô não. Seu Cristino defendia o povo das glebas do Arreal da Barrera, terra que Coronel Ladera pois cobro cum arrumação de papel e pulítica. Prendero nóis muitos mêis, mais em sala livre, enquanto o pai do seu Cristino era vivo. Depois foi na grade mesmo. Nóis iscapô pur ajuda do cabo Olino que veio fugino tamém, mais levou um tiro derradeiro na persiguição e ficou na barranca do rio. Eu mais seu Cristino, atirado na perna, garramo num toco e descemo quase dois dia intero até a barra desse córgo e vimo dá aqui.

Na semana seguinte, Cristino já dava demonstração de cura, já passava um tempo acordado, mas não dizia nada, ainda fraco, ganhando sustento nas canjas e nas beberagem que Zefinha fazia. Zaqueu já ia limpar roça com Dito. Da janela ela ficava vendo os dois no capino, sempre conversando.

- Minha minina, qué qui nóis vamo fazê cum os dois.

- Sei não. O Cristino inda tá muito fraco. Mas se aparece a tropa do governo nóis esconde eles na dispensa.

- Eles num vão vim mais, vão só cercá na barranca do rio pr’eles num vortá.

O tempo passando e um dia Zefinha que cochilava ao lado do catre de Cristino, tigela na mão, acordou com as dele procurando as suas. Ele sorriu e beijou suas mãos agradecido.
Conversaram o dia inteiro, ele pôs mais detalhes na história, contou da sua terra, da sua gente, da morte do pai, da sua sina, agora de sozinho no mundo.
No começo, andava escorando numa vara de tambu, que Dito escolheu no mato para ele. Depois já andava pela casa, encostando aqui e ali. Nesse tempo, ajudava Zefinha nos serviços da casa. E por fim já curado.

- Tá chegando o tempo de ir.

- Por que não fica, trabalho é o que mais tem. A terra é grande, eu mais Dito carecemo de ajuda.

- Num posso abandoná minha gente, tenho que voltá.

- Traz eles, o Zaqueu falô deles p’ro Dito. Aqui tem terra prá todo mundo, nóis ajuda no dismato. Agrega os que for possível.

- Minha minina tá certa, seu Cristino. Sou seu positivo prá buscá eles; Baldino tá perto de passá, sigo cum ele até a barranca do rio, de lá o senhor dá orientação.

Naquela mesma noite, Cristino e Zefinha dormiram a primeira vez juntos. Seis meses depois começaram a chegar os baianos no Sertão do São Marcos.





MQ




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