segunda-feira, 31 de maio de 2010

domingo, 30 de maio de 2010

Murtinho e Rosina - SERTÃO DO REINO

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Murtinho e Rosina



Os dois se acostumaram a entrar nas casas abandonadas, sorrateiros e silenciosos, parecendo ratos, cada dia escolhiam uma.

Murtinho, negro cambaio, quando ficava nervoso ou ao andar, balançava muito os braços, Rosina muito gorda, bochechuda, ria por qualquer coisa. Ambos filhos de escravos brutos, desde pequenos viviam juntos, primeiro no engenho Salvador, ela puxando canga de bois na moenda, ele engarrafando a aguardente destilada. Considerada desde nova fêmea de Murtinho, Rosina fazia por onde, estava sempre perto dele, rindo e fazendo rir.

Arrematados em leilão judicial, por pendência de separação, foram fazer farinha na fazenda Mucucuri, lá trabalharam a mocidade toda, ele na lavoura, ela no poço tirando casca, amassando, ralando mandioca puba e dando curera às criações.
Os novos donos, muito católicos, não aceitavam nenhuma prática africana entre os poucos escravos que tinham. Todos eram batizados e freqüentavam a missa aos domingos. Com o tempo, deram conta da idade já chegada e oficializaram, na igreja, a união de Murtinho e Rosina.

Dali só saíram quando a moça Deodora casou com o diplomata e importador francês Philipe D’artang e os recebeu como presente de casamento.

Nunca tinham visto uma cidade grande na vida, a banda de música tocando na frente do Palácio foi o primeiro deslumbramento dos dois que riam como duas crianças, chegando a perturbar a apresentação dos músicos. Andaram pela rua dos Açougueiros, no caminho da casa nova, assombrados com o tanto de gente, mais ainda com o mascarado tocando tambor e fazendo seus anúncios. A sinhá na frente com o marido, se divertiam com a alegria deles.

Foram anos de brandura na vida de Murtinho e Rosina, serviço só o da casa, os donos sem filhos, sinhá vaidosa, ia muito com o marido a festas, recepções e reuniões elegantes, às vezes os deixava sair para ver a banda, maior felicidade não havia.

A política fervilhava em volta do casal, fosse na casa dos donos, na rua ou na conversa de escravos e mestiços, eles alheados, viviam rindo, nem prestavam atenção. Gostavam mesmo era de imitar o jeito de falar e os gestos das pessoas importantes que viam de longe no Largo das Mercês, na missa. O jeito de comer e de andar dos donos.

Murtinho, apesar do desinteresse, ouvia quando ia buscar, na casa importadora, o da despensa, falar, pelos outros escravos que faziam mercância ambulante, carregadores, entregadores, mensageiros, alugados e até pelos mestiços, o que acontecia, política de uns e de outros – exílios, demissões, alistamentos, anistias, leis do reino, abolição, deserções, roubo de armas. Fingia interesse, contava tudo a Rosina e incorporavam o que ele ouvia nas brincadeiras que faziam imitando os abastados ditando as leis.

Souberam pela gritaria na rua, os cabanos tinham tomado a Província, sinhá andava de um lado para outro, preocupada com o marido que saíra de madrugada, parecendo saber da invasão. A assuada tomava conta das ruas, entre vivas, o povo saudava seus líderes. Murtinho e Rosina custaram entender a seriedade da hora. O saque na casa importadora fez com que fossem parar no convés do brigue Conquista, para estranhamento da escrava - apesar da novidade, tinha medo do balançar nas marolas. Assim que sinhô soube, escreveu ao novo presidente por via do consulado francês. Em menos de um mês, estavam todos de volta, o prejuízo ressarcido e a vida no normal.

Durou pouco tempo a calma nas ruas, Murtinho vinha contando que nada mudara, a conversa era a mesma - prisões, demissões, perseguições e nada da abolição, os poderosos iam voltando, os reinóis continuavam nos principais cargos do governo, muita gente descontente com as brigas entre os cabanos. Sinhá ouvia atenta e preocupada.
A invasão da casa do vice-cônsul francês, ato ilegal, cometido como se houvesse ali uma reunião de conspiradores, pôs outra vez todos no convés do brigue Conquista. Dali viram o bombardeio que os navios em manobra despejaram sobre o casario.

As notícias vindas da terra confirmavam os desentendimentos e brigas entre os cabanos - o presidente, deposto e assassinado, os revoltosos aclamando o comandante das armas como novo governante. O assunto no brigue era a interpelação diplomática que o cônsul faria ao governo assim que chegassem os navios franceses.

O esclarecimento da afronta e o pedido formal de desculpas pelo novo presidente foi aceito. Permitiu a volta à normalidade e o desembarque de todo o corpo diplomático e suas famílias.

A vida de Murtinho e Rosina mudou pouco, continuavam risonhos por qualquer coisa, imitando o cotidiano do navio, como fossem marinheiros, oficiais graduados dando ordens ou as outras pessoas importantes que viram, mas uma pequena mudança tiveram, com a sinhá preocupando-se cada vez mais com os acontecimentos, deixando de sair e não os deixando também. Apenas Murtinho ia à casa importadora buscar encomendas e mantimentos, na volta, contava o que ouvia na rua – iam entregar o governo, ninguém queria deixar as armas, não confiavam nos portugueses, muitas desavenças que só Angelim dava jeito e nada da abolição e da igualdade prometida.

Na cozinha, Rosina ria do jeito de ele imitar o novo presidente nomeado, que viram na missa quando ouviram sinhô contar na sala, do ataque na vila da Vigia e das conseqüências – prisões e perseguições aos cabanos, muita gente fugindo para o interior e para os navios surtos no porto.

A luta não demorou, o ataque foi violento com muitas mortes, saques, algazarras e vinganças. A perseguição aos estrangeiros foi intensa. O descontrole com a morte do ex-presidente Vinagre foi grande, e a transferência do governo para a ilha de Tatuoca provocou muita confusão, quem não fugiu logo nos primeiros dias para os navios, ficou à mercê de violências, que nem o presidente cabano aclamado conseguia controlar.

Uns poucos, na boa vontade do Presidente Angelim, cuja família era mantida reclusa em Tatuoca, conseguiram ainda fugir com a ajuda do bispado, em meio a euforia desmedida dos revoltosos.

Os escravos levaram, um pouco de cada vez, os pertences necessários até o bispado, passavam despercebidos pelas ruas. No começo da noite, ajudaram os donos a vestir as batinas que o bispo mandou e os acompanharam com archotes de pouco lume até o local do embarque.

Murtinho e Rosina quando se viram sozinhos na casa, entre risos e mesuras tomaram conta como se fossem os senhores, roupas, objetos e adornos serviam para suas imitações e brincadeiras. Vestiam-se como os senhores e ficavam pelas frestas das janelas olhando a rua, tentando descobrir as casas da vizinhança que tinham sido abandonadas. Ficaram obcecados pela possibilidade de entrar na casa alheia e ver o que tinha lá. E assim faziam. Murtinho saía para descobrir qual a casa que estava abandonada, e lá entravam, sorrateiros e silenciosos, para suas brincadeira de imitar os poderosos.


MQ

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FESTIVAL DE BESTEIRAS QUE ASSOLA O PAÍS

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Um grupo de pessoas e alguns parlamentares querem e estudam incluir no texto constitucional um artigo dizendo que temos o direito de ser felizes.

Ufa! Até que enfim vamos poder ter esse direito.

Não posso deixar de lembrar Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) e seu Festival de Besteiras que Assola o País.



MQ
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OFICINA DA ESCRITA - RIO DE JANEIRO

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sábado, 29 de maio de 2010

ZÉ BUGIO - COLHO CURA (SERTÃO DO REINO)

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zé bugio
sérgio souto / joãozinho gomes / marcos quinan

tão logo o mensageiro
caiu finou no caminho
pediu pro remeiro
arfando baixinho
seguir viagem sozinho
levando aquela mensagem
ao seu destino

ninguém ali sabia ler
nem joão camboa nem zé bugio
foram capazes de entender
como se daria o litígio

ninguém ali sabia ler
nem joão camboa nem zé bugio
foram capazes de entender
como se daria o litígio

o que a mensagem quer dizer
fala de faca ou de cartucho
qual estratégia a se manter
fingir debanda em transfúgio
a ordem é matar ou morrer
ou se amoitar em refúgio

foram buscar alguém pra ler
nas cercanias do engenho
voltaram ao amanhecer
com um feitor ruim de gênio
que em voz alta pôs-se a ler
todos atentos e ingênuos
não conseguiram perceber
que lia mais onde era menos

leu errado
o desgraçado leu errado
leu errado
sabia que ia morrer açoitado...

leu errado
o desgraçado leu errado
leu errado
sabia que ia morrer açoitado...

e assim partiram à mercê
da intuição do inesperado
pois a cidade estava lá
e possuía quatro lados
só restava avistar
qual seria atacado e atacar

voz e violão: sérgio souto
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GABRIEL MOURA - RIO DE JANEIRO

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JULI MARIANO - RIO DE JANEIRO

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BIRATAN

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sexta-feira, 28 de maio de 2010

3a. EDIÇÃO DO PRÊMIO CULTURA VIVA

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IRINÉA MRIBEIRO E CLARISSE GROVA - RIO DE JANEIRO

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Eneu - SERTÃO DO REINO

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Eneu



Acompanhava presa na pele a titinga. Comendo sem dor, a lepra; sua desdita.

Por mais de dois anos, vivia num depósito de enfermos que a Santa Casa recusava tratar, o medo de contágio os excluía. Isolados, nas palhoças escondidas, entre moléstias diversas, vestindo muafos, viviam como bichos, mesmo os que tinham pouca manifestação das doenças eram abandonados pelas famílias. As mulheres davam os filhos aos abastados para se recolherem naquele lugar à espera da morte. E ela vinha, quase todos os dias, sem cerimônias, sem tristezas, era um alívio.

Eneu, com os olhos cada dia mais esbugalhados; perdida a condição de esmoleiro por cauda das chagas, vivia naquele mato quase sem as mãos.

Se diferençavam dos animais somente por não se proverem de comida, recebiam restos da Fortaleza da Barra, na bondade não sabiam de quem. Apenas encontravam os alimentos num ponto do mato.

Das terras da fazenda Val-de-Cans, apenas sinais do antes uma cerca, separavam-na das misérias pútridas se misturando. Cuidados apenas no pouco conhecimento que cada um tinha de alguma erva, ilusão enfraquecida todo dia.

No tempo que ali estava, Eneu nunca tinha visto um médico, aquele era o primeiro. Chegou acompanhado de duas carmelitas, visitando palhoça por palhoça. Daquele dia não ficou sem vê-lo nenhum outro, sequer.

Remédios, roupas, comida e a organização começou a mudar o lugar. Quem chegasse era examinado cuidadosamente e muito poucos ficavam, a maioria voltava medicada ou era encaminhada à Santa Casa.

O médico era um abnegado, em pouco tempo transformou as cabanas isoladas onde viviam sós, sofrendo suas mazelas, em pequenas enfermarias onde cada um convivia com quem tinha sua mesma moléstia. A convivência lhes dava conforto, abrandando o que sofriam. A fome não existia mais, se eram restos que ainda comiam, eram agora colocados no jirau, não mais como se fosse comida de porcos esparramada pelo chão.

Eneu, de onde estava, viu a chegada dos soldados fortemente armados, astuto, escondido no mato, ouviu toda a conversa. Tinham ordens de esparramar todos que ali estavam para que fossem finar os dias espalhando suas moléstias contagiosas pelos cabanos no interior.

A reação do jovem médico foi violenta, disse não permitir, teriam que passar pelo seu cadáver, seus muitos anos de estudo para aprender salvar vidas se impunham contra quem quer que tivesse dado aquela ordem, que o fizessem saber. Nenhum tiro foi disparado, o silêncio foi quebrado apenas pelos passos do médico lhes dando as costas.

Em seu dia, Eneu pediu para ser levado pra fora. Seus olhos pareciam saltar, do esbugalhado que aumentava, para dentro das árvores copadas, sem as mãos que pudessem apontar, parecia querer fazê-lo com os olhos. Sem nenhum movimento que não fosse esse, exclamou:

– Minha mortalha... doutor... vencemos eles.

E se foi.


MQ

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LIA SOPHIA - MACAPÁ

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JANE MARA E TRIO - SÃO PAULO

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RENATO BRAZ E ZÉ RENATO - SÃO PAULO

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quinta-feira, 27 de maio de 2010

GIGI FURTADO - BELÉM

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JAC RIZZO - O anjo torto


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Para um amigo querido, que não
consegue dissipar as brumas
da sua vida.
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Ele queria se levantar, claro que queria.
Mas o peso de suas escolhas, lhe prendiam definitivamente ao chão.
E era um anjo. Um doce e terno anjo.
E sem asas e sem céu e sem poder voar,
não sabia mais o seu lugar.
Vagava na noite por bares sujos e estranhos.
Ao lado, às vezes, de gente que não o conhecia, não o compreendia.

Nos momentos de solidão e vazio insuportáveis, fingia felicidade, se arrastando ao lado de companhias que, sequer por um segundo, poderiam visitar seu mundo.
Mas ele voltava sempre para o seu quarto confuso, onde coisas esquisitas e preciosas, se amontoavam em prateleiras.
Coisas que quando estendia a mão para pegá-las,
desapareciam no fundo buraco negro da sua história.
Ali, de cabeça baixa, entre surpreso e abatido,tentava resgatar a vida que passara.
Mas as lembranças iam e voltavam, desencontradas,
desfocadas pelo tempo.

E era só um anjo que sonhava sozinho.
Que se embriagava todos os dias de sua humanidade.
E assim, sem ombro pra encostar a alma cansada e triste,
chorava os amores que não pudera segurar
e as coisas todas que quebrara.
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...

LUPÉRCIO MUNDIM - GOIÂNIA


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CHICO ALVES - NITERÓI

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quarta-feira, 26 de maio de 2010

CLÁUDIA CUNHA - RIO DE JANEIRO

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O HOMEM PROVISÓRIO - BELÉM

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Celeste e Rosário - SERTÃO DO REINO

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Celeste e Rosário



Desde muito nova, sentia aquele desconforto, uma sensação que foi aumentando com o passar dos anos e acabou naquele calor espargindo pelo corpo, tomando conta e só passava com os banhos e a mão da mucama Rosário, esfregando devagar sua pele. Uma luxúria tomava conta, invadia. Deixava-se ficar por horas na intimidade cada vez maior: as mãos da escrava e a água fria lhe davam um prazer cada vez maior.

Naquele dia, acordou com uma sensação diferente, sentou-se na cama assustada, pensando ter se urinado. Gritou à mucama que dormia no pisador, quando se viu toda suja do sangue da escorrência. Rosário tomou uma bacia de rosto e pôs-se a lhe fazer o asseio. Celeste foi se acalmando, ao mesmo tempo que sentia a pele em brasas e a vontade de que a mucama nunca parasse de lhe tocar as coxas. Levantou-se para que os lençóis fossem trocados e não resistiu ao desejo de se despir por completo.

Enquanto o fazia, olhava a negra por entre o avoar do lençol que vestia o colchão. Sentou-se na cama e pediu a Rosário que lhe escovasse os cabelos. Parecia um ferro em brasas, a cada escovada, a pele arrepiava, como se o gesto de Rosário fosse sopro avivando brasa. Apertava o cabo do espelho com força, quando percebia a respiração da escrava se alterar mas a coragem de lhe mandar fazer as coisas que começou a imaginar naquela hora, não teve.

Seu quarto ficava na parte da frente da casa, com a janela protegida dos olhares de quem passava, por um caramanchão, de tal modo que conseguia ver a rua por entre as folhas sem ser vista. Naquele dia, a confusão era das maiores, um sem número de soldados passava toda hora. A mucama dava notícias da luta, no longe se ouvia os estampidos. Era curiosa Celeste e gostava de ficar espiando na janela, segurando Rosário por trás com o corpo encostado no dela, protegendo.

Ignorando os acontecimentos e o alvoroço, pediu um banho e se desnudou toda, buscando novamente a reação da serviçal. Sua respiração ficou quase ofegante, as mãos esfregavam devagar as costas. Rosário sentia a mesma coisa, tornou-se ousada quando os mamilos da ama foram crescendo, ao mesmo tempo que os seus, sentiu-se úmida, com o olhar bem dentro dos olhos que Celeste lhe deu antes de puxá-la para junto de si, rosto com rosto, boca com boca, corpo com corpo; os cheiros se misturando, a luxúria tomando conta das duas que se amaram enquanto a fuzilaria tomava conta das ruas da cidade.


MQ

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ZÉLIA DUNCAN - AÇOUGUE CULTURAL T-BONE - BRASÍLIA

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terça-feira, 25 de maio de 2010

LEI 12.244 - BRASIL


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Publicada no Diário Oficial - Lei de número 12.244 que determina a obrigatoriedade de todas as instituições educacionais públicas e privadas de todos os sistemas de ensino do Brasil a manter um acervo de livros na Biblioteca de, no mínimo, um título para cada aluno matriculado. Cabendo a cada instituição determinar a ampliação deste acervo conforme sua realidade, bem como divulgar orientações de guarda, preservação, organização e funcionamento das mesmas. O prazo para o cumprimento é de, no máximo, 10 anos.

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prisioneiro


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quisera roubar-te a beleza
para cantá-la em minha poesia
como um ladrão comum
levá-la por entre os versos
nas estradas do meu corpo
suavemente...
depois me deixar aprisionar
pelos teus braços
agora já encarcerado
que os teus olhos cuidem os meus
que não escape um só olhar
como a cobra e sua presa
obedecerei sem relutância
todos os teus gestos
mas por favor não se apresse
qual sol quando passeia no dia
me torturas com tua pele macia
mas torturas lentamente...
e nunca me negues, te peço
o ensejo de liberdade
no instante do teu beijo


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MQ
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ANA TERRA

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Por Ana Terra, de Niterói


O artista precisa ir por caminhos que nunca passou antes. E, no caso dos mestres, por onde nunca ninguém passou.


“Saiba que os poetas como os cegos podem ver na escuridão” (Chico Buarque)

Na próxima encarnação quero vir artista outra vez. Falei isso para minha filha, também artista, que não acredita em reencarnação, mas ouvia e se emocionava junto comigo, músicas de meu letrista soberano. Conversamos sobre o que nos leva a continuar criando mesmo com irrelevante retorno financeiro, como é o nosso caso e de muitos. Para mim está claro: crio para não morrer ou enlouquecer. Sei que de outra forma não daria conta da intensidade do que sinto. Mas paradoxalmente só com esse sentimento avassalador é que me entendo com a vida.

A criatividade nasce dos sonhos, da fantasia que todos temos, dormindo ou acordados e é gerado pelo desejo de transformação. O inconsciente é livre e para ele nada é impossível. Dessa liberdade muitas vezes incompreensível nascem novas conexões que nos revelam saídas, novos caminhos para nossas questões pessoais. E assim é para a maioria.

A criação de uma obra de arte vai além desse limiar. O devaneio precisa entrar em acordo com a memória e a consciência individual e buscar um canal apropriado de expressão para, de essa fusão nascer a possibilidade de fazer da lama um anjo, dos sons separados uma música, das palavras soltas um poema. A fantasia pessoal é instrumentalizada para se amalgamar a um material e ganhar uma forma que será accessível ao outro. Para o artista, criar é cair em si para sair de si.

Quando se diz que arte é muito mais transpiração que inspiração é para, talvez, se livrar da idéia de que não é um trabalho. Ao contrário do castigo de Sífiso, da lenda grega, condenado a empurrar eternamente morro acima a pedra que rola morro abaixo, o artista precisa ir por caminhos que nunca passou antes. E, no caso dos mestres, por onde nunca ninguém passou.

Quanto maior o artista, mais riscos corre. É preciso coragem existencial para ir por mares nunca dantes navegados. Quanto mais dá asas à fantasia, mais domínio do material é exigido. Quanto mais aperfeiçoa a linguagem, mais cuidado precisa para não aprisionar a imaginação.

A conciliação entre natureza instintiva e civilização, que se fundem num fluxo harmônico e encontram ressonância no outro, apresenta-se como resolução de um conflito. Esse “estado de graça” que alcançamos quando admiramos uma obra de arte que entra em sintonia com a nossa percepção, é o alívio de saber que alguém pensou nisso antes e nos adiantou a viagem.

E há ainda aqueles que ampliam tanto as fronteiras da criação que sua obra só encontra acolhida tempos depois de sua morte. Porque não se submeteram aos padrões estéticos de sua época ou às leis dos homens ou às do mercado. Seguiram as leis que não estão escritas e por isso se tornam imortais.

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ADILSON ALCÂNTARA - BELÉM

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segunda-feira, 24 de maio de 2010

ROLANDO BOLDRIN - SR BRASIL

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BIRATAN

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Tranca de Rio - SERTÃO DO REINO

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Tranca de Rio




E muitos vinham tirar água do manadeiro, escravos, alugados, de ganho, forros, mestiços curibocas, mamelucos e cafuzos. No lugar, quase ermo, próprio para bebedice, fartavam-se de cachaça, taniça e achavam tempo para emboança e arrelias.

O mais antigo aguadeiro, Tranca de Rio, negro congo, pés grossos e disformes, alforriado em recurso de compra, à noite, fazia babaçuê no mato perto do Sumidouro onde evocava elementos, orixás e calungas, num batuque remedado das matracas, dali tirava pagas em aguardente e fumo que vendia aos demais. Durante o dia, mantinha a freguesia de água, alugando braços ou cobrando favores dos iguais.

Das imediações do Pau Água quase nunca saía, era também uma espécie de conselheiro para qualquer assunto. Sabia ouvir e, com muito jeito, arrancar e contar segredos. Nada se passava na cidade sem que soubesse com detalhes. Ria muito, por qualquer coisa e seu riso parecia contaminar o corpo todo num tremor que findava nos pés desproporcionais, batucando o chão como tocasse tambor de revira.

O respeito foi adquirindo quando comprou a alforria e nas todas vezes que socorria quem necessitasse. Paravam na rua para falar com ele como fosse um principal. Padre Batista o chamava pelo nome. Não recusava nenhum convite pra esmolar, até conduzia a imagem do santo, puxando as rezas da igreja. Sabia todas, parecia professar a fé católica.

Tranca de Rio ouvia contar da política, das perseguições e deserções com atenção disfarçada, comendo farofa de manicoaras que levava pronta no farnel surrado, sempre amarrado na cintura. Dali abastecia, do que descobria acontecer entre os reinóis e os estrangeiros abastados, sua gente que se armava para lutar contra a escravidão e a miséria.

Fazia delato na conveniência de sua justiça, sempre dizendo ouvir dizer, confidenciando ilícitos de funcionários, militares, meirinhos, desonestidade de grandes comerciantes, lascívia de senhores com índias e escravas. De suas conversas saíam fel e mel, nunca diretamente ao interessado, sempre por intermédio de algum aguadeiro familiar às partes envolvidas.

Se arvorava arrumar o errado por via das rezas que dominava e de fazer correr a verdade no meio dos enganados, prevalecia seu julgamento. Ninguém percebia, que seu jeito simples e risonho, esmolando nas casas, ouvindo escravos, disfarçava um zeloso seguidor do padre Batista.

Ao mesmo tempo que servia a todos, obtinha, com seu riso, parecendo um cacoete, informações importantes que fazia chegar à casa do padre através do velho Bartolo.

As armas começaram a surgir em meio a deserções, no escuro das madrugadas, provinha do alistamento obrigatório, da perseguição ao padre Batista em fuga pelo interior, dos foreiros chamando quem quisesse lutar. Sem que ninguém soubesse, Tranca de Rio aliciava os descontentes, falava da abolição prometida, induzia escravos a fugir, índios e mestiços a se juntarem no interior com os pequenos grupos que iam se formando.

O repicar fúnebre dos sinos começou junto com a manhã em todas as igrejas. Tranca de Rio recebeu a notícia sério demais, como não era seu costume ser. Padre Batista era a esperança de tanta gente, quem iria se opor as injustiças, quem iria lutar nos corredores dos palácios contra os reinóis. Queria pôr-se a caminho das matas de Nazaré, mas foi incumbido ficar por Bartolo. Mais que antes, precisavam juntar gente para a luta que estava próxima, ficar atento nos sinais combinados, marcado o ataque, saberia e se incorporaria à luta.

Os dias passavam com uma lentidão medonha, quase ninguém aparecia para tirar água, alguns largavam o pote e se embrenhavam no mato sem falar nada, prenunciando um conflito como nunca visto. Por ali passavam famílias inteiras carregando seus poucos pertences, pedindo rumo a Tranca de Rio, falando no assassinato do padre, mesmo depois de se confirmar sua morte natural, imputavam culpa aos reinóis pela perseguição que lhe faziam, obrigando a vagar, sem recurso, pelo interior da Província.
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As milícias se postavam na saída das igrejas prendendo qualquer um que tivesse idade de lutar, alistamento obrigatório ferindo leis de exceção, exacerbando as famílias. Nos navios fundeados, uma movimentação nunca vista. Foram os primeiros efeitos que aquela morte produziu. Com os dias passados, tudo voltava ao normal na Cidade do Pará, mas o interior fervilhava, lideranças apareciam em todos os lugares. Armados do que dispunham, foram se concentrando e formando pequenos grupos, encorajados pela indignação de suas misérias.

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No escuro, Tranca de Rio esperava amainando a impaciência com goles cada vez mais fartos de aguardente. De repente, a fuzilaria começou, seguida de ordens e assuadas. Com a borduna em riste, partiu para o rumo do embate, rindo com todo o riso do seu natural, o corpo dançando no meio do fogo cruzado, num sapateio envolto por fumaça, cheiro de pólvora e gritaria, mais bizarro ainda quando as primeiras balas quebraram seu corpo, acelerando os movimentos do tronco, atingido muitas vezes, não parou de bater os pés, como se dançasse dois ritmos diferentes ao mesmo tempo. Parte do corpo dançava seu riso e o outro sua morte. Tranca de Rio findou estendido, estrebuchando, mexendo os pés como se estivesse rindo.


MQ

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domingo, 23 de maio de 2010

PANTACO E BUIÚ - COLHO CURA (SERTÃO DO REINO)

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pantaco e buiú
sérgio souto / joãozinho gomes / marcos quinan

a riqueza ao seu alcance
podia com os dedos tocá-la
tê-la pra si num só lance
entre o peito e a bala

a moeda entre os dedos
o polegar em seu brilho
o anelar no amoedo
o indicador no gatilho

dentro da aurora bem cedo
soa na casa o estampido
grito de susto e de medo
a destampar os ouvidos

vicente lopes morrendo
sobre o assoalho caído
pantaco indo correndo
por onde tinha vindo

foi receber a riqueza
que tinham lhe prometido
e deparou com a esperteza
de um tapuio sabido

buiú olhou com a certeza
viu em pantaco escondidos
culpa anseio frieza
por trás de gestos fingidos

e pôs as cartas na mesa
o ganho bem repartido
toda a pequena riqueza
pro crime ser esquecido

voz e violão: sérgio souto
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Peito meu


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Na guia a liberdade
Na culatra a saudade
É sozinho que carrego
Tempo e sentimento
Rebanho abstrato
Conduzido pelo fato
De vagar sem direção

O vagido soa alto
Visita de circunstância
Que recebo com os atos
Amistosos da razão
E hospedo dia e noite
Dentro do meu coração

Vivo ao léu
Alma minha
E no céu
Vida minha
Meu sertão

Meu poema é um aboio
Desalterando a solidão
Serve sempre de apoio
Ao amor sem solução

Peito meu


MQ
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sábado, 22 de maio de 2010

Lunaiá e João Tungo - SERTÃO DO REINO

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Lunaiá e João Tungo



Eram quase trinta, entre alugados e forros, amontoados na porta. Serviço, o de sempre; coveiro, carregador de excrementos, de estivas e do mercado, vez em quando carrasco ou surrador.

O oficial apontador escolhia entre eles quem melhor o favorecesse. Destacava o trabalho com o mesmo critério. Reclamar a quem? Ficar perseguido? Tudo era aceito.

Lunaiá, João Tungo e os filhos, negros de ganho da viúva do oficial Antônio Dalgosto, agradavam ao apontador para limpar os excrementos e carcaças de animais, modo andar pelas ruas e lugares, encontrar os iguais sem despertar atenção dos soldados. Podiam parar em qualquer ajuntamento e tentar convencê-los a largar seus donos, sabiam todos os movimentos no interior, ensinavam caminhos mas, o mais importante era transportar no bangüê as armas e munições roubadas, de um lugar pra outro, principalmente a pólvora que era ensacada em pequenos bornais e facilmente escondida em meio aos excrementos . Recebido o sinal de que tinham alguma coisa pra levar, baixavam a padiola pra descanso em lugar conveniente. Para entregar, puxavam o canto de trabalho perto do destinatário:

paresque i’ele
pissuía curuba
iu’oto caxingava
tucavum caracaxá
tambur punga
i ganzá...

c’us ói de jetatura
nhanga vi’u buzugo
lundu d’ele suzinho
gingando inroda
na patra dutro mundo

Serviam de ouvidores das conversas de soldados e mestiços se gabando de crimes e delitos - iam lá saber o que eram farrambandas ou não? Relatavam tudo que ouviam, os nomes dos contrários, os comentários dos políticos, o que mais pudesse ajudar os cabanos nas matas de Nazaré.

O casal passava despercebido pelas ruas, cumprindo serviço público e lutando pela liberdade. Eram a maior ligação entre os que simpatizavam com a causa, mas queriam ficar no anonimato, e os grupos que se organizavam. A pólvora mudava de mão em quantidades cada dia maiores. Mas o dia chegou, foram surpreendidos pelo oficial inglês que queria saber que canto era aquele.

paresque i’ele
pissuía curuba
iu’oto caxingava
tucavum caracaxá
tambur punga
i ganzá...

c’us ói de jetatura
nhanga vi’u buzugo
lundu d’ele suzinho
gingando inroda
na patra dutro mundo

Em conhecer o significado, descobriu os pequenos sacos de pólvora no bangüê, entre o mal cheiro e as fezes dos animais.

Os escravos, na frente da dona, explicavam ter encontrado aquilo na rua e que, como fedia, fizeram seu serviço. A viúva ameaçava o oficial, acreditando nos negros; ele querendo fazer cumprir castigo, levou-os presos.

O castigo foi dado exemplarmente em público. O casal foi açoitado pelo algoz encapuzado, em meio das risadas de quem assistia.

Quem observasse pelo furo do capuz, os olhos do algoz, veria as lágrimas correndo. Lunaiá e João Tungo estavam sendo chicoteados pelo próprio filho que ganhava como surrador naquele dia.


MQ

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BIRATAN

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sexta-feira, 21 de maio de 2010

PATRÍCIA BASTOS - EU SOU CABOCA

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PATRICIA BASTOS
EU SOU CABOCA
Independente

Lauro Lisboa Garcia - O Estado de S.Paulo

O canto de Patricia Bastos, originário da tribo tucuju, é como um chamado cativante da natureza, da mais plácida paisagem. De voz cristalina, lapidada e envolvente, a cantora do Amapá lança seu quarto álbum, Eu Sou Caboca (independente, contemplado pelo Projeto Pixinguinha). Além de reinterpretar lindamente Natureza (Rosinha de Valença/Leci Brandão), ela escolheu a dedo canções novas de Zeca Baleiro, Rafael Altério, o mestre paraense Nilson Chaves (que participa do CD), Dante Ozzetti (um dos arranjadores), Celso Viáfora e outros do mesmo calibre. O gaúcho Vitor Ramil divide com ela os vocais em Pequeno Pescador (Vicente Barreto/Joãozinho Gomes). Patricia frisa que o CD é uma releitura de ritmos "do Brasil nortista", da beira do Rio Amazonas - como carimbó, marabaixo, batuque, retumbão, lundu - "rediscutidos como tons harmônicos universais". Ou seja, une o ancestral e o contemporâneo, sem folclorismos nem verniz modernoso. Merece ser (re)conhecida.

Via ESTADÃO - http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100529/not_imp558490,0.php
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JAC. RIZZO - Bailarina da penumbra

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Mal acabo de me espreguiçar de longas e intermináveis noites, e vislumbro, de repente, uma luz que dança à minha volta.


Uma luz ainda tímida, meio acanhada, receosa, como um leve sussurro no ar.

Uma brisa que vem roçar minhas vidraças, me soprar palavras doces, me contar da imensa saudade que teve de carregar todo esse tempo.

Deixo ela entrar...essa luz que traz doçura e beleza.

Quase a empurro para dentro da minha longa espera. Deixo que ela me devolva, cada momento que ficou perdido pelo caminho.


Somos, agora, bailarinos da mesma dança.
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Jac. Rizzo - http://jacrizzo.blogspot.com/
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JOÃO SABIÁ - RIO DE JANEIRO

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RUY GODINHO - RODA DE CHORO

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RODA DE CHORO – SÁBADO – DIA 22.05.10

O destaque do 1º bloco vai para a Coleção Choro Carioca e a música de um mineiro e uma cuiabana, ambos nascidos no final do século XIX. O mineiro é R. L. Oliveira. A cuiabana é Zulmira Canavarros, que foi líder do conjunto musical que participou, em 1944, da primeira transmissão radiofônica no Centro-Oeste.

No 2º bloco, o destaque outra vez vai para o LP/CD Pixinguinha, Benedito Lacerda, Jacob do Bandolim, Canhoto e seu Regional – Os Choros dos Chorões, de 1977. O curioso é que a base desses regionais era formada por Dino (violão de sete cordas), Meira (violão), Canhoto (cavaquinho) e Jorginho (pandeiro), ícones da música instrumental brasileira da primeira metade do século XX.

No 3º bloco, teremos a presença do Quarteto de Saxofones de Brasília, formado por Vadin Arsky (sax soprano), Isaac Gomes (sax alto), Fernando Machado (sax tenor) e José Nogueira Jr. (sax barítono) e o som do CD Bem Brasileiro, primeiro da carreira do quarteto, lançado em 1997.

No 4º bloco, o destaque vai para os choros do repertório do CD Duetos - Biscoito Fino, com 14 músicas interpretadas em duo por diversos artistas brasileiros, lançado no ano de 2006.
No 5º bloco, destaque vai para o jovem e talentoso violonista e compositor paulista Rafael Schimidt e o som do seu primeiro disco de carreira, o CD Antigamente era Assim, lançado em 2010.

Ouça pela internet:

Rádio Câmara, Brasília:
www.radio.camara.gov.br (rádio ao vivo), sábados, 12h.

Rádio Roquette Pinto, Rio de Janeiro:
www.fm94.rj.gov.br
terças e quintas-feiras, 14h; quartas e sextas-feiras, às 2h.

Rádio Utopia FM, Planaltina-DF, quartas-feiras, 18h.

Produção e Apresentação: Ruy Godinho

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FÁBIO BARROS - SÃO PAULO

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quinta-feira, 20 de maio de 2010

NILSON CHAVES - BRASÍLIA

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Antoíno Boi - SERTÃO DO REINO

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Antoíno Boi



Ordenhou a vaca, escolhida no zelo da confiança, tirou tipuca separada na cuia ornada que Dedé Peixada trouxe da Vila de Monte Alegre, esperou o terço canto de galo e caminhou pra cozinha, certo do cheiro, café acabado de coar. Acocorou no batente da porta, depois de deixar a cuia em cima da mesa grande, enredando capim-açu, formato laço como de cabelo que deixava todo dia secando na ponta do varal das lingüiças - pra acendê fogo, dizia a Deralda.

Era assim, não parava quieto, lidava com o gado de curral ainda escuro. Quando recendia o cheiro do tição, apagado na véspera, sendo acesso junto com lenha nova, as vacas paridas já iam longe das vistas. A bezerrada berrava miúda no cercado. O tempo de esperar Sinhá comer biju e notar a cuia cheia, de ele tomar a bênção; era o de trançar um laço.

Conhecido no nome de Antoíno Boi, dado por dizer ser boi quando, no meio deles, conhecer o que pensavam os muitos. Seu modo de lida, apreciado pelo dono, o distinguia dos outros escravos, quase todos filhos dos dois casais comprados de um arruinado, vindo da Guiana.

Benquisto desde menino, cresceu levando o gado para pastar capim-da-praia e ajudando no curral. Rapaz, ajudava nos aceiros, alotava e acunhava o gado no embarque nas gambarras. Agora cuidava de tudo, até do leite gordo da Sinhá.

Ouviu falar por Dedé Peixada numa salga de pirarucu. Era coisa séria, logo iam tomar a província, alforriar todos, expulsar os estrangeiros, todos iam lutar; contou que a Vila estava cheia de soldados, oficiais estrangeiros, viu descarregar pólvora, armas e até uma canhoneira, fundeada.

Antoíno pensava na vida que tinha, a fartura; nunca faltava nada pra eles, podiam plantar o que quisessem, até fumo, todos muito sadios, cuidados em qualquer doença, a bondade do Sinhô e a Sinhá rezando junto, rezou quando o pai morreu, rezou e também chorou quando a mãe morreu. Cuidou a febre de Deralda quando cobra ofendeu. Ali nunca viu usar o ferrete, a não ser no gado. Aceitavam a alegria deles, vinham ver dançar lundu e batuque.

Conversava com os outros, cada um pensava dum jeito. O irmão mais velho ia embora, junto com outros dois parentes, pro Acará; diziam juntar pra fugir mais de trinta. Sonhavam ser brasileiros livres.

Nunca lembrava do pai achar a vida ali ruim, ou falar de onde veio; lembrava sim, de vê-lo com a mãe, ajoelhados, rezando junto com Sinhá. De falar dos franceses da Guiana, nunca da África onde nasceu. Da liberdade, dizia que era pra cada um, uma coisa diferente, era o que convinha. Se sentia livre sendo escravo de quem era, provido de tudo, nunca fora humilhado como sabia muitos, para esses sim, a liberdade era outra coisa.

Desde menino, Antoíno via os principais, reunidos na mesa grande do salão, falando dos reinóis explorando tudo na província, o preço da carne e o transporte, seus armazéns sobrepondo preço para os foreiros e mestiços sem trabalho de renda.

Naqueles dias, muita gente apareceu em conversas demoradas, Sinhô passava tempo com o cenho franzido. Todos falavam do movimento dos navios, vistos de longe entrando pelo Rio Pará.

Dedé Peixada encostou trazendo recado; era chegada a hora; quando fizesse noite iam desarmar a Vila, tirar as armas e remar pro Acará. Num meio de dia, começou a chegar gente de todo lugar, muitos armados, outros com machados, facões e outras ferramentas. Antoíno nunca tinha visto tanta gente reunida, nem no pátio nem na cozinha onde preparavam a munição de boca. Até Sinhá ajudava Deralda dar as ordens.

Na varanda, Sinhô esperava por ele. Ia ficar só com Sinhá, as mulheres e crianças, disse-lhe. Elas ajudam lidar com o gado. Recomendava o manejo, a caça aos morcegos e o cuidado nos embarques. Enquanto ouvia, pôde ver o irmão mais velho distribuindo os poucos cartuchames, não precisou fugir, ia lutar junto com Sinhô. A liberdade para os dois era parecida.

Nos dias, Sinhá pedia conta de todo o serviço, ouvia atenta, perguntava. Punha ordens. Contava na cozinha histórias da mocidade, perguntava casos. Antoíno e a meninada ficavam sentados no chão, ouvindo também, era o que mais gostava, depois de agradar a Sinhá com tipuca.

Empaiolava o milho, as poucas braças colhidas por Severa e os filhos, quando a notícia chegou. Na cozinha, o vozerio abafou os mugidos dos bezerros, passando de hora de serem desapartados. Deralda gritou da porta chamando. Tinham tomado o governo, estavam todos vivos.

Antoíno tocou os bezerros na aberta, margeando o canavial, até a eira velha, sentou na areia, enquanto a bezerrada lambia sal, olhou a larga do Marajó, respirou fundo e lembrou o pai, liberto como ele.


MQ

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NIVITO GUEDES - MACAPÁ

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BIRATAN

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quarta-feira, 19 de maio de 2010

RORAIMA - BRASÍLIA

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DOZINHA E INÁCIA / PEDRO POTAÇO - COLHO CURA (SERTÃO DO REINO)

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dozinha e inácia / pedro potaço
sérgio souto / joãozinho gomes / marcos quinan

remavam descendo o rio
com a canoa cheia de cachos
falavam de tudo e riam
quando o assunto era macho

no repuxo da curva o arrepio
ouviram a explosão diacho
e viram sinais de fumaça
se levantando dos fachos

remaram pensando desgraça
e viram a destruição
a casa grande a senzala
tudo em cinza no chão

se foram dozinha e inácia
saíram por este mundão
remaram em caminhos de água
andaram em braços de chão

inválidas foram achadas
nas malhas da imensidão
dozinha comendo a terra
inácia sem respiração

potaço voltava da guerra
e ainda as tomou pelas mãos
dozinha comendo a terra
puxou-lhe a recordação

lembrou-se da mão de farinha
do relho mordaz do patrão
o mesmo que indagorinha
provou na morte o perdão

voz e violão: sérgio souto
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ADRIANA MALATO - BELÉM

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NANNA REIS - BELÉM

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50 ANOS EM SEIS - BRASÍLIA

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terça-feira, 18 de maio de 2010

CELSO VIÁFORA - LANÇAMENTO

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CD e DVD - Batuque de Tudo - Celso Viáfora - encontre na http://ladodedentrobrasil.blogspot.com/
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MARCO ANTONIO QUINAN - ESTAVA LÁ

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Estava lá, parado, olhando pra mim, fitando cada detalhe da minha expressão, me vigiando acintosamente, somente esperando que eu me manifestasse, uma resposta, desaprovação, chilique, quietinho, não sei se branco de medo em relação a minha reação, esperando que eu emitisse algum som de desaprovação, que me deixasse vencer pela ira ao lê-lo, e me olhava, de cima até em baixo, incomodando meu silêncio, meu precioso tempo, e era raro isto acontecer, perder a estribeira, ser vencido por tão repugnante palavras, jogar a toalha assim sem mais nem menos e entrar numa raiva que não era minha, que não deveria ser, e embora toda regra está sempre sujeita a exceção, quando percebi não pude fazê-la valer, contradizendo incondicionalmente a afirmação por não conseguir suportar muito tempo nem impedir, como se toda raiva imbuída no mais sereno dos mortais não fosse suficiente para suplantar o que estava querendo dizer, a não ser que eu fosse capaz de redobrar visceralmente a paciência e tentar renovar cada sentimento ou pensamento ruim que afete a busca do “conseguir vencer com todas as honras” calando a vontade de gritar e bradar para cada espaço vazio deste sobe e desce incessante de pessoas de papo climático, sem idéia melhor na cabeça a não ser reclamar de uma vida a qual mal pertencem, e que fenecem diariamente `a inconseqüência de seus atos, de suas menções negativas, por serem mesquinhas, não-coletivas, inúteis, sem a maior qualidade que existe no ser, enquanto humano, que é de vivenciar a vida, com todo o torque, potencializando cada passo e atitude, ceifando e engolindo ansiosamente o conhecimento regente de toda existência da vida, o amor, a compaixão, o conhecer os outros mais do que um “superficialmente”, e não o simples e barato argumento afetivo que algumas pessoas utilizam para sobreviver, contudo o verdadeiro pilar vigente em todos os segundos do respirar, dizer, sentir, velar, querer, dispor, amar, fazer, redimir, e calar do homem, que mesmo raça burocrática e que não se entende, pode inserir, num lampejo de consciência, como qualquer outra busca, a tentativa de se erguer frente a adversidades, resignificar, aceitar, evoluir e sorrir, em mais uma oportunidade de poder ter novas relações interpessoais, mais que um “bom dia” e “boa tarde”, algo único, casual, ou pra sempre, mesmo quando ele está lá branco, parado, olhando pra mim, dizendo em Arial fonte 12: “Reunião de Condomínio”.


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Zé Bugio - SERTÃO DO REINO

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Zé Bugio



O grupo se reuniu naquela noite. Combinaram resistir à sobranceria da coroa. Dali saíram emissários para todo lugar na urgência dos fatos.

De couto, no camboqueiro, às margens do Bujaru, Zé Bugio, sungando as calças toda hora, esperava notícias com os homens reunidos. O lugar, vigiado em todas horas, fervilhava de fugidos, tapuios, cafuzos e os curibocas enviados do Acará. Estavam prontos, era a força formada em poucas armas tomadas em escaramuças, nos caminhos e na revolta fermentada pela exploração portuguesa.

O mensageiro foi chamado de madrugada para levar a mensagem, passou mal e finou no caminho. Pediu ao remeiro entregar a carta mas não deu tempo de contar do conteúdo. Começou a falar de um grande ataque para assumir a província, mas não conseguiu completar, ficou sem falar do dia, e dos procedimentos.

Zé Bugio, ao receber a mensagem, pediu ao portador que a lesse, mas o rapazote não sabia. Ninguém ali sabia ler para desespero do destemido Zé Bugio.

Juntou um grupo de seguidores, que municiou com as melhores armas para buscar no engenho, léguas acima, quem soubesse, qualquer pessoa, fosse escravo ou não, por vontade ou à força se preciso.

Ele mesmo ficou andando de um lado para outro, o dia inteiro e, à noite, passou horas em volta da fogueira olhando as letras daquela caligrafia bem traçada; vez em quando esbravejava por ninguém saber ler. Dali não arredou até amanhecer.

Gastou a madrugada chamando, ora um, ora outro, como se inventariasse as condições de cada e suas armas. Uma inutilidade aquilo, pensava nos homens, consumia-se naquela providência sem saber o que fazer do tempo, na impaciência de esperar.

O dia clareava, já nascendo mormacento, quando ouviu, enfim, o barulho dos homens, chegando com o feitor do engenho, amarrado pelas duas mãos num pau atravessado no pescoço, como se canga fosse. Vinha coxeando, com um riso esquecido no canto da boca, de cabeça erguida, numa altivez que dava raiva; limpava no ombro, toda hora, o filete de sangue que escorria no canto da boca.

Trocaram ásperas palavras no meio da roda formada, Zé Bugio estendeu o papel que o feitor leu quase à força, tal qual estava escrito; a convocação era para que tomassem pelo Acará, o rumo de Murutucu em grupos de poucos homens, levando toda arma e toda pólvora que conseguissem, terçados, cacetes e o que mais tivessem, deveriam chegar em dois dias, iam tomar a cidade de surpresa.

Ali mesmo, depois de ler a mensagem, o feitor foi morto a pancadas. Um sofrimento que lhe impingiram num ritmado igual se tivesse no tronco, vingando castigos e maus tratos.
Traçaram o rumo, espaçando a saída de cada grupo, na recomendação de margear os caminhos e evitar serem vistos ou qualquer confronto. O prazo de se juntarem de novo era o ponto da Biqueira onde as canoas esperavam para atravessarem o Acará.

Zé Bugio seguia com o negro Fitada e João Camboa quando este exclamou:

– Leu errado! O desgraçado leu errado, sabia que ia morrer.

Disse como se tivesse certeza e contagiou os companheiros. Zé Bugio esbravejou em demônios, travou a marcha, enquanto pensava e tomava a decisão de seguir, mesmo que o rumo fosse o contrário. Pensou alto que a cidade não ia sair do lugar, por qualquer lado que chegassem ia ser igual, estavam prontos para qualquer luta.

Mal pensamento restou, e se os remeiros estivessem esperando na baía e o combate que lhes destinaram fosse na armada? Avaliava nervoso, caminhando, mesmo na indecisão, quando ouviu o barulho de resfolego de animal e a voz, parecendo de mulher.

Aviou João Camboa, ladeando pela esquerda; qual foi a surpresa; era a viúva Teodora e a mucama no caminho com mais dois negros velhos, pessoa tida como corajosa, dona daquelas terras por herança de finado marido, era respeitada por todos e temida por muitos.

Assustadas, mas sem esboçar o menor sinal de impor galope nos animais, ficaram caladas até Zé Bugio estender o papel e pedir que a sinhá lesse. Ela o fez se empalidecendo muito, confirmando na sua leitura as suspeitas de que o feitor tinha mentido, deviam era margear pelo outro lado, até avistar as canoas.

Um sinal de cabeça e um tapa nas ancas do cavalo foi o agradecimento. A raiva dominou a hora no esbravejar do cabano, os três se puseram de novo no mato, não sabiam o que fazer para juntar os grupos espalhados e ficaram mais afobados ainda com o comentário de Fitada.

– Cunheço ela! Tá mintindo... mais quê tá...

Zé Bugio pediu marcha, a cidade estava lá, atacava por onde fosse.


MQ

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segunda-feira, 17 de maio de 2010

EU E O HOMEM - BELÉM

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JAC. RIZZO - Armadilhas do tempo

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"Não me iludo
Tudo permanecerá
do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar
Corcovados
Fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole
Pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento..."


Gilberto Gil

O tempo é mágico. E não, não é uma descoberta. Todos nós sabemos disso. Impossível remontá-lo, percorrer os mesmos caminhos. O tempo se dissolve, se desintegra, desaparece na fumaça de nossa lembrança. Transforma-se rápidamente em algo surreal. Em alguma coisa que vagamente podemos descrever. Lugares que nos pareciam assim, mas já não sabemos se são.

E os sentimentos? Esses então, mais distantes ficaram. Uma bruma espessa os encobre Não podemos dizer, com exatidão, o que foi gostado ou quanto. Nosso desejo antigo, nos parece irreal. Não mais alcançamos essa sensação.


É como um objeto que guardamos, muito bem guardado, mas não sabemos aonde. Estamos à mercê desse impostor que nos tritura, nos mói e nos dá as costas.
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Jac. Rizzo -http://jacrizzo.blogspot.com/
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ROLANDO BOLDRIN - SR BRASIL

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domingo, 16 de maio de 2010

Pantaco e Buiú - SERTÃO DO REINO

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Pantaco e Buiú



Vinha no rebojo do braço de rio que crescia e minguava solavancando as águas, remoinhando como numa bateia, fúria de vento encanando rodopio, hora tardia de margear, pensou antes de avistar o mandiocal.

A riqueza estava ao seu alcance, podia tocá-la; com a moeda entre os dedos, pensativo, passou o polegar no serrilhado como se conferisse o valor, pôs-se na direção até enxergar a casa.

O silêncio conferiu, todos dormindo; no claro da noite escolheu onde esperar a melhor hora. Na aurora ouviu os primeiros movimentos, se aproximou vendo Vicente Martins Lopes sentado na rede calçando as botas, subiu dois degraus da varanda e disparou. O estampido ressoou pela casa na primeira hora da manhã, quem correndo chegou perto ainda viu o último sangue esguichando, estava morto.

Pantaco, sem que ninguém o visse, entrou pelos matos, mesmo caminho que veio, atravessou a calma das águas naquela hora, ia buscar sua riqueza com os irmãos do morto.

Vicente Martins Lopes era o primogênito, filho de reinóis, nascido na Cidade do Pará, beneficiado com o morgado do pai, herdade, escravos, casa comercial e outras rendas.
A irmã, Constância, viúva sem filhos, vivia com ele no casarão da Rua dos Mártires; seu irmão, Jorge sempre em viagens pela Europa, custeadas por Vicente que nunca se casara, passava muito tempo na fazenda desde que se unira aos foreiros para se opor aos sucessivos governos portugueses e seus simpatizantes que menoscabavam o valor dos brasileiros.

Pantaco, de mãe africana e pai mameluco, moreno claro, forte, bem vestido e calçado por exigência de sinhá, parecia um alforriado bem sucedido quando andava pelas ruas. Mas vivia junto com os outros quatro escravos no casarão, era o preferido da senhora e a servia como se fosse uma mucama.

Jorge, sempre que voltava de suas viagens, manifestava à irmã o descabido; não dividirem os cabedais deixados pelo pai. Precisavam fazer alguma coisa, não podiam ficar à mercê do irmão que vivia metido com foreiros, pregando idéias de infames. Queria vê-lo morto, já que não aceitava falar em dividir os bens.

Observava a dedicação do escravo à irmã com malícia no olhar mas também com a naturalidade de homem muito viajado, freqüentador da corte, acostumado com o predomínio da vontade dos mais poderosos. Via em Pantaco, escondida, a mesma ambição que sentia. Aliciá-lo, para seu propósito, foi mais fácil que convencer Constância.

Pôs em sua mão a primeira moeda portuguesa das muitas que receberia; instruiu, junto com a irmã, a alforria. Combinaram esperar seu embarque para Portugal, a animosidade aumentar na política da província e os outros da casa acostumarem com Pantaco dormindo, de vez em quando fora, em serviço de aluguel na marinhagem. Constância concordava em acompanhar pelo pasquim pregado na porta da Lopes & Filhos, a situação política e dar o dia certo da consumação.

A notícia chegou do Acará junto com o corpo, um casal de escravos e o velho tapuio Buiú. Espalhou-se entre os políticos rapidamente levando muitos deles, consternados, a se reunir, partidários e oponentes culpando uns aos outros.

Pantaco providenciou, na igreja, o sepultamento, a mortalha, a música fúnebre e o pagamento das mortuárias. As exéquias, no mesmo dia, foram assistidas na igreja, cheia de partidários do morto, muitos comerciantes e algumas autoridades, num ambiente tenso de olhares acusadores e de muita tristeza da irmã.

Na cerimônia, o comandante das armas fez a promessa de todos os esforços para encontrar o assassino que já estava sendo procurado pela milícia desde aquela manhã. Tropas tinham sido enviadas à Vila do Acará para investigar junto com as autoridades de lá.
Sem testamento, o espólio foi arrolado, enquanto Jorge voltava de viagem, os negócios tocados por Constância, com ajuda de Pantaco, na cidade, e do tapuia Buiú, na fazenda, pois mais entendia das ocupações já que vivia lá desde menino, sempre o braço direito do patrão.

No mesmo dia em que o navio aportou trazendo Jorge, Buiú chegava do Acará. Vinha trazer a farinha e buscar o de prover. Encontraram-se na Rua do Norte e seguiram juntos até o casarão onde o tapuia sempre dormia junto com os escravos.

O encontro de Jorge com a irmã e Pantaco foi mais de silêncios do que de cumplicidade; alguma coisa estava diferente, o escravo aumentara a intimidade com a irmã que parecia se submeter ao olhar dele. O acerto se deu poucos dias depois, venderiam e dividiriam tudo. Jorge queria viajar pelo mundo, Pantaco receberia sua pequena fortuna em moedas portuguesas como combinado e teria oficializada sua alforria. Constância sonhava morar na França.

Começou desconfiar no dia do enterro, passada a cerimonia. Pantaco pareceu inquieto demais; nos dias em que ficou no casarão Buiú notou as pequenas coisas que aconteciam, incomuns antes da morte do patrão: o escravo dando ordens com voz autoritária, vestindo roupas que só poderiam ser do morto e recebendo incumbências da senhora sempre de portas fechadas. Quando acompanhou Jorge pela rua, no dia de sua chegada, viu a pouca bagagem que trazia, estranhou. Conhecia seus hábitos elegantes desde pequeno, ao contrário do irmão, um rústico, vivia folgazão, desfrutando do nome da família pelas altas rodas, sustentado como estudante, sem nunca ter pisado na escola em Coimbra.

Na casa, mal se via Constância, sempre pelos quartos trancada numa tristeza maior que o luto quando o pai morreu.

Buiú andou pelas ruas, nas bodegas e terreiros. Entre remeiros, aguadeiros, soldados, procurando saber o que comentavam. Nos ajuntamentos de escravos, apesar de proibidos, ouviu muito sobre política e deserções, nada do crime.

Procurou os conhecidos alugadores que viviam se gabando das mortes executadas, ninguém sabia de nada e, entre eles aquele caso era tido como coisa de família, muito escondida. Falavam que se fosse política saberiam, quem contrata vingança quer que todos saibam, modo produzir o temor. Fosse política, mais temor ainda.

O tapuio passou dias vigiando Pantaco até ficar, sozinho, frente a frente, sustentou apenas o olhar no susto dele, não disse uma palavra sequer. O negro, com o deixar cair dos ombros e o semblante, confessou. Foi a reação esperada, Buiú estendeu a mão esquerda espalmada e com a outra em perpendicular a palma estendida, fez pequenos movimentos batendo a direita rapidamente, próximo dos dedos, próximo do punho até ouvir no silêncio de Pantaco, concordância.

Dividiram a pequena fortuna e nunca mais foram vistos.


MQ

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